O HOMEM BOM
Parte 1: Vida
A chuva caía torrencialmente sobre a pequena cidade de São
Romero. Cada relâmpago oferecia um vislumbre diferente da região, queimando a
imagem fantasmagórica da serra bem fundo nas retinas daqueles que observavam a
tempestade do abrigo de suas janelas.
Imagens dos pinheiros em dança frenética e caótica pela
encosta que se desfazia em rios enlameados; da velha e arruinada capela de São Romero,
outrora uma bela visão com suas torres e vitrais góticos, neste momento abrigo
para todos aqueles – poucos, é verdade – que não tinham um teto (quanto mais
uma janela) para chamar de seu; do esqueleto monstruoso do prédio que fora um
dia fora uma refinaria de produtos químicos, ainda hoje excretando seus dejetos
no Damião, o pequeno córrego da região; das lápides cinzentas do cemitério de
São Romero, um pequeno lote cortado pelo próprio Damião; do bar do George, onde
uma pequena multidão se reunia para chorar o recém finado Ângelo das Dores.
Pegos de surpresa pela tempestade, os enlutados se viram
obrigados a enterrar o falecido o mais rápido possível e deixar as elogias e
despedidas mais sentidas para um lugar mais protegido do temporal, que calhou
de ser justamente o bar do George. Muitos dos convivas prefeririam prestar suas
homenagens em solo mais sagrado do que um botequim, mas Lucas, o próprio irmão
do morto os lembrou de que aquilo não era o tipo de coisa com a qual Ângelo teria
se preocupado.
- Meu irmão não frequentava bares, é verdade, dona Selma –
ele respondeu à velha senhora de coque apertado e um rosto com rugas tão
profundas quanto casca de árvore velha – mas ele também não julgaria aqueles
que o fazem.
- Mas esse não é um lugar cristão! – berrou um homem com o
cabelo lambido encharcado – Não é digno do rebanho de Cristo se enfiar em um
lugar onde o diabo nos tenta com o álcool!
- Escuta aqui, Valdemar – Lucas respondeu irritado –,
ninguém te empurrou aqui para dentro. Muito pelo contrário, o George fez um
grande favor de nos deixar entrar no meio dessa tempestade!
- Não foi favor nenhum, Lucas – disse George trazendo
toalhas de uma salinha atrás do balcão – o seu irmão também é meu amigo. Era,
quero dizer. Que Deus o tenha, coitado.
- Obrigado, George – agradeceu Lucas, pegando uma toalha
para si e ajudando a distribuir as outras – tenho certeza que meu irmão está
bem encaminhado. Ele era um verdadeiro cristão, sabe? Não como esse bando de
carolas aqui.
- Eu bem sei – respondeu George – todo mundo na cidade
conhecia o Ângelo. Ajudava em tudo o que podia, aquele lá, sem nunca pedir nada
ou se meter na vida dos outros. Ele que te criou, não foi?
- Foi sim – concordou Lucas – depois que os nossos pais
morreram, o George cuidou de mim totalmente sozinho. Ele era pouco mais que um
adolescente na época, e eu, pouco mais que um bebê, mas ele conseguiu nos
sustentar. Largou a escola até que eu pudesse ajudar com a casa – foram bem uns
7 anos até lá – e foi trabalhar na... – gesticulou vagamente em direção à
fábrica, pois ninguém na cidade ousava citar o lugar pelo nome – naquele lugar.
- E ele estava lá quando... – George começou.
- Não, não. Graças ao bom Deus, não. Ele saiu de lá e foi
ser escrivão um mês antes da tragédia.
- Homem de sorte, seu irmão. Um homem abençoado.
- Sim, senhor. Um homem abençoado que se esforçava para
estender suas bênçãos aos outros.
Quando eu cheguei à idade de trabalhar
também, meu irmão voltou aos estudos. Os dois trabalhávamos e estudávamos, e em
momento nenhum ele deixou de ser um homem devoto. Levava-me à igreja aos
domingos, até o dia em que eu acabei discutindo com ele por causa disso. Eu não
tinha a mesma fé que ele. Ressentia-me por Deus ter levado meus pais enquanto
eu ainda estava em uma idade tão jovem.
- Mas isso mudou.
- Mudou – concordou Lucas – mudou, mas levou tempo. Enquanto
eu me rebelava na minha adolescência, o Ângelo aguentava tudo com um coração de
ouro. Nunca vi um homem mais dedicado ao próximo.
- Ele estava sempre apoiando alguma obra de caridade –
concordou George. Foi ele que deu a ideia de usarem a capela velha como abrigo,
não foi?
- Foi sim. Ele conseguiu convencer a paróquia que era mais
importante dar um teto aos desabrigados
do que manter um prédio velho como lembrança de tempos em que a Coroa gastava
seus vinténs aqui, ainda mais depois que construíram uma capela nova. Deus não
mora em prédios, ele dizia.
- E como foi que ele acabou professor?
- Ah, bem, isso aconteceu, sabe? Parece que depois de olhar
para o que nós passamos para estudar, ele acabou se envolvendo com esse tipo de
coisa. Passou 10 anos arrecadando dinheiro e gente para ajudar na construção de
uma escola aqui na cidade e, quando a prefeitura não quis se envolver, fez-se
ele mesmo o professor.
- Um homem abençoado de verdade – disse George. - Um anjo.
- Sim, um anjo. Por isso que tenho certeza – Lucas afirmou
limpando uma lágrima dos olhos azuis aquosos – meu irmão agora está no céu.
Parte 2: Morte
O veneno estivera em suas veias por décadas, desde a época
da fábrica. Saíra de lá achando que escaparia da malignidade que atacara seus
colegas, mas o destino não lhe mostrou clemência.
Carregaria a morte em seu
sangue do dia em que inspirou os ares da fábrica até o dia em que a terra o
engolisse. Não havia como dizer quando isso seria, Dr. Bento lhe dissera, mas o
tempo lhe custaria caro.
Então Ângelo carregou a morte consigo em cada dia de sua
vida, sem nunca se esquecer da dádiva que era estar vivo, nem o quão
inescapavelmente condenado seu corpo estava. Nos últimos dias, a degradação lhe
atingiu com golpes cada vez mais fortes. A dor era onipresente e vinha em
formas tão variadas. Queimava pelas veias, irradiava pulsante no cérebro,
sufocava os pulmões, apertava o coração e soltava os intestinos até que não
houvesse mais nada.
Mas nada disso importava. Ângelo fora um bom homem em vida.
Amara sua família. Cuidara de seu irmão e de todos os outros a quem conseguira
alcançar. Servira ao Senhor e sabia que Sua justiça o recompensaria. Agora, no
fim da vida, ansiava pela morte e sabia, em sua humildade, que seria receberia
a graça do amor de Deus.
Portanto, foi com a certeza do paraíso que Ângelo expirou
naquela tarde de verão.
Escuridão total. Pancadas. Fortes pancadas vindas de cima
atingiam... o quê? O teto? Não, aquilo era baixo demais para ser um teto. Uma
tampa. Fortes pancadas atingiam a tampa do recipiente em que ele se encontrava.
Recipiente? Caixa. Estava em uma caixa. Por Deus, de onde vinham essas
pancadas? Não. Não pancadas. A caixa chacoalhava, mas com a impressão de estar
sendo carregada, não pelo ritmo dos golpes. Então, a caixa parou de se mexer.
Algo sendo jogado sobre a caixa. Não conseguia se mexer. Não
ainda. Pouco espaço? O som de pancadas ia ficando mais forte e... mais
distante? Ouviu vozes. Não compreendia aqueles sons. Por que o colocaram numa
caixa?
Lentamente, seus braços começaram a se mover. Ele fizera isso?
As mãos tateavam a tampa da caixa em busca de rachaduras na madeira. A caixa
era grande e de madeira. E tão, tão escura.
Uma coisa lodosa caiu sobre ele, trazendo consigo minhocas,
vermes e pequenos besouros. Seus braços cavavam, levantando-o. Cavavam, cavavam
e cavavam, sempre para cima. Cavavam para cima? Fora enterrado então?
Uma mão se viu livre da lama. Chovia. As pancadas eram o som
da chuva sobre a tampa do caixão. Por que o enterraram? Morrera? Atrás da mão
livre, veio seu braço. O outro braço logo veio atrás, e os dois trouxeram para
fora o resto do corpo. Estava com fome.
Luz. Pela tempestade, conseguia divisar uma luz não muito
distante. E um... cheiro? Cheiro de quê? Quanta fome! Suas pernas colocaram-se
em movimento na direção da luz e daquele cheiro. Ah, aquele cheiro delicioso!
Ah, aquela fome horrenda! Precisava comer, precisava comer já! A luz se
aproximava enquanto sua fome crescia. Luz no escuro significava pessoas.
Pessoas poderiam lhe ajudar. Sentia tanta fome!
Ainda coberto de lama e encharcado pela chuva, chegou à luz.
Havia uma porta ali. Madeira velha. Podia ouvir pessoas lá dentro. Não entendia
o que diziam. Os braços se estenderam para a porta, empurrando, mas ela não
abriu. Meu Deus, quanta fome! Forçou a porta. Seus membros estavam duros e
desengonçados. Forçou a porta, ela cedeu.
Rostos pálidos lavados de lágrimas encaravam-no em diversos
graus de desespero. O cheiro! A fome! Meu Deus, o cheiro ali era quase
insuportável! Um homem veio em sua direção.
- Meu irmão! – disse o homem que o abraçava em pranto –
Ângelo, meu irmão!
Conhecia aquele homem? Meu Deus, o cheiro! A fome! O cheiro
era ainda mais forte agora que o homem estava assim tão perto, e a fome se
tornara demais para aguentar. Mordeu-o.
O sangue invadiu sua boca, escorrendo pela sua garganta e
caindo sobre suas roupas. O homem agora gritava, e não era o único. Mas não
poderia parar agora. Mesmo que quisesse, sua boca agia sozinha, e ele não
queria parar. O sabor era o de uma iguaria como jamais provara. Preenchia-o com
uma sensação indescritível que se intensificava a cada mordida.
Não havia muito mais do homem, mas olhando a sua volta, viu
as pessoas que ainda berravam como um rebanho de porcos no matadouro. Cada um
deles, sabia, de uma delícia ímpar. Um banquete esperando por ele. Havia
morrido, sabia. E este era o paraíso.
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Uau!!!!!rs
ResponderExcluirEssa pegada do suspense e do terror sútil me agrada muito!
Se na primeira parte a gente nem imagina o que virá, ao começar a ler a segunda, fica tudo tão nítido e vermelho que é impossível não querer terminar logo!
Parabéns!!
Beijo
Adorei a reviravolta do conto. Quando comecei a leitura, jamais imaginaria o fim. Simplesmente genial! Nada melhor do que uma vida eterna e um paraíso cheio de sangue. haha
ResponderExcluirDesbravador de Mundos - Participe do top comentarista de reinauguração. Serão quatro vencedores!
tem um ar bem mórbido, deu até um medinho rsrsrs
ExcluirBruno,realmente ao iniciarmos esse conto não imaginamos a reviravolta que ele irá dar e o quanto tudo se modificará,confesso que não gosto muito de coisas bizarras,mas foi uma sacada bem surpreendente o final inesperado.
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