COISINHA
Então essa é a cara da morte, ela
observou. Parecia mais bonita que há dois meses, parecia muito mais radiante do
que há uma hora, agora ela via cores no espelho, cores e um quase sorriso ou
qualquer outra coisa que a fazia sentir-se muito melhor. Suicídio. Até a
palavra soava bonita. Eu sou a cara da minha morte.
A coisinha estava dormindo, que
maravilha, que milagre, finalmente. Dormia há um tempo, aquele pacotinho rosa
de braços e pernas que diziam que era seu filho, sua cria, seu, seu. Antes de
sair deu uma última olhada nele, a coisinha mexia a boca mamando o ar, sonhando
com ela. Inconscientemente ela levou as mãos aos seios cheios e doloridos.
Adeus, coisinha.
Sair à rua como estava era
libertador: o marido não estava ao lado com um carregador e o pequeno chorão
dentro. Ela mesma não o carregava, fosse dentro da barriga, fosse nos braços. Olhou
em volta puxando o ar, deliciada como se descobrisse algo inteiramente novo:
hoje não era gestante, não era mãe. Era apenas uma mulher, uma mulher dentre
inúmeras, apenas uma mulher sentindo-se incrível de vestido roxo, maquiagem e
cabelo lavado, apenas uma mulher sentindo-se incrível dentro da sua certeza de
que não faria o caminho de volta.
O plano era simples: caminharia
até o metrô, arrumada e tranquila, iria até a plataforma do canto como quem
quer entrar no último vagão, esperaria o trem se aproximar rápido, forte e
jogando cabelos para trás, então daria dois passos para frente como se o vão
fosse apenas uma continuação do chão e um dragão de ferro não passasse correndo
por ali. Seria atropelada pelo focinho gigante e então não veria mais nada.
Atrapalharia poucos caminhos, eram três da tarde.
Pensou em ver a irmã antes de ir
para a estação, mas ela perguntaria pelo menino e a mulher mentiria que ficou
com o pai, mas ele estava trabalhando, trabalhando sempre e agora muito mais,
ele tinha que sustentar a coisinha, seu milagre. Por Deus, ele não é a cara do
pai?
Não era. Ela lembrava sempre do
teto do hospital, aqueles quadrados brancos com luzes machucando os olhos, um
intruso doendo por dentro, contrações, gritos e suor, pessoas passeando com
uniformes azuis, alguém segurando sua mão, força, eles diziam, pra fora,
aceite, o bebê está vindo, força. Não entendia o que havia de errado, ela estava
de oito meses, ainda faltava um pouco para a coisinha nascer, o que estava
havendo? A dor alucinava e distorcia os sons. Entendeu que o intruso de seu
corpo queria sair, então que saísse. Vá embora.
Não sabia se teria um garoto ou
uma menina, nunca quis saber. “Deixe ser surpresa, prefiro descobrir na hora.”
Não tinha opções de nome, dizia que pensaria com o bebê no colo. A esperança
não confessa de um natimorto.
Quando a dor ficou insuportável,
de repente aliviou. Ouviu muito longe um choro e mostraram algo magro e
enrugado, cheio de sangue, banguela e se esgoelando, roxo e cinza.
- É menino! Amor, temos nós temos
um filho!
Era a coisa mais feia que vira na vida.
Desmaiou.
No quarto, a irmã acariciava seu
cabelo quando ela acordou com fios por todos os lados. O marido balançava um
monte de pano azul com uma cara idiota.
- Vem ver, mana. Vocês precisam
escolher um nome. Ele é perfeito!
- Fique com ele pra você, eu não
quero.
Ela lutava para não odiar a
coisinha feia, não falava o que sentia para ninguém, as pessoas não entendiam,
obrigavam a amar aquela coisa que não era sua, ele não lhe pertencia, ela não
queria vê-lo cada vez mais. Sentia-se traída. Em todos os lugares diziam que a
maternidade é linda, em todos os cantos faziam parecer a coisa mais doce do
mundo, mas não era, era torto, amargo, dolorido, cheio de medo, cheio de culpa.
Sozinha com o menino, apenas sentia nojo do cheiro dele, tinha medo de
encostar, queria negar seu leite, virar as costas e deixá-lo no berço para
sempre e fingir que ele nunca existiu.
“Na hora de fazer foi bom. Toma
que o filho é teu. Fez, agora cria. Você tem que amar teu filho. Já estava na
hora, seu relógio biológico estava apitando”.
Onde encontrar esse amor de que
tanto falavam? Achava que não tinha como amar alguém que estava dentro dela,
ela nunca o vira, aprenderia a gostar dele com o tempo. Tantas mentiras. Ela
olhava para a coisa feia e não sentia nada. Chorava todos os dias, e todos os
dias palpitavam sobre como cuidar, mas por que você não faz assim? Não segure
desse jeito, ele quer mamar, ele está sujo, fique mais perto, saia da cama,
olha essa bagunça, não grite assim, veja como é lindo.
Chegara à estação. Passou pelas
catracas, esperou o trem passar. No próximo ela pularia. Vários trens vieram e
ela continuava parada, não saltava em frente a ele nem dentro dele. Entendeu,
de repente, que não podia se matar, simplesmente não podia. Ah, coisinha, estou
voltando.
Virando a esquina de casa
escutava o choro do menino. Estivera duas horas longe de casa, e ele esbravejava,
berrava, machucava os ouvidos e a paz, não parava nunca, chorava e chorava,
tomava fôlego e gritava, gritava, gritava.
Ela olhou para ele, menino feio,
ainda mais feio chorando com a cara vermelha. Não quis tentar acalmá-lo, a dor dela
era muito maior, ele não entendia, ele nunca saberia, ninguém mais entendia.
Sentou-se ao lado do berço agarrada com seu travesseiro e chorou junto com o
intruso, derramou lágrimas grossas e pretas de rímel, sufocou os gritos no
travesseiro manchado de batom. Ele chamando por ela, ela chorando porque não
conseguia chegar até ele, não como o mundo pedia.
Calma, terrivelmente em paz,
secou as lágrimas e decidiu que acalmaria a coisinha. Com o travesseiro tampando
a cara feia, ela sufocou os gritos dele pra sempre.
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:( Caramba....tô arrepiada e sem saber o que dizer!
ResponderExcluirQue conto impressionante!. Que dedo na ferida voraz.
Me vi na história, na agonia, no desespero..mas confesso que o final me pegou de surpresa e tô sem reação alguma!
Beijo e parabéns!!!
P.s(ainda bem que é só um conto, chega a doer na alma)
O conto vai guiando a gente para uma falsa sensação de "vai acabar tudo bem", mas a escritora joga na nossa cara com maestria que o ser humano consegue ser terrível se ele quiser. O final desse conto deixa a gente com nojo daquela parte humana que nós temos, mas que mantemos escondida até de nós mesmos.
ResponderExcluirToda a magia da maternidade compulsória.
ResponderExcluirA gente esconde nosso "lado mal" o tempo todo. A sociedade espera que a gente seja assim ou assado e a gente acaba achando tudo isso muito normal e SE FORÇA a ser o que não é. Isso é mostrado aqui de forma nua e crua, não só pelo drama da personagem, mas porque enquanto você lê, você fica ali esperando o "final feliz" porque é assim que tem de ser, não? Aí no último segundo você toma um tapa na cara. Não, não "tem que" merda nenhuma!
ResponderExcluirParabéns!
Uau! Esse texto foi forte, pesado e tão intenso. O final então... Não imaginava algo assim. Simplesmente incrível.
ResponderExcluirAdorei o conto!
Desbravador de Mundos - Participe do top comentarista de reinauguração. Serão quatro vencedores!
nossa!
ResponderExcluirarrepiante e real ao mesmo tempo!
trabalha várias questões atuais: a maternidade e com suas alegrias e pesares (estes os quais ninguém quer falar sobre) e ao mesmo tempo traz esse avassalador lado da depressão!
http://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Um dos contos mais incríveis que li sem dúvida.
ResponderExcluirEle tem a completude de uma história inteira em suas poucas linhas.
Estou chocada com essa história. É uma descrição perfeita para depressão pós-parto e certamente já aconteceram coisas assim. Achei humano, rela e fantástico.
Tentando recuperar o fôlego aqui :O
Abraço e Bons Livros,
Claquete Geek ❤
Sabe oque achei mais interessante? Não importa quantas vezes eu tente mudar o final, mandar a criança para a avó cuidar, abortar ( nem sei como falar sobre isso), adoção, essa mulher sempre será o "monstro" da historia.
ResponderExcluirResumido uma parte do conto, ela não tem condição psicológica para cuidar do bebe, pensado nisso, qual o melhor jeito de ajudar? como a sociedade pode colaborar que a mulher e a criança não sofram tanto? eu não sei, mas esse conto fez refletir um pouco.
Allana,apesar de não gostar de histórias com esse tipo de final,amei a maestria com que você construiu a narrativa e conseguiu induzir um falso final,fazendo-nos acreditar que o desfecho seria feliz,que tudo de ruim tivesse ido embora,daquela mulher desesperada e fria,antão é surpreendente ela se torna,mais desprezível e monstruosa em sua ação.Parabéns e beijos!!!
ResponderExcluir#CORRIGINDO:então
ResponderExcluirDurante todo o momento que li esse conto fiquei imaginando se a pessoa que escreveu passou por esse momento, ou conhece alguém que já passou, porque foi como se eu tivesse revivendo esse pesadelo, senti na alma o que essa garota passou. Um texto para ser refletido, e deveria ser lido por muitas pessoas, gostei muito. Parabéns!
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