OFÉLIAS
O
que é que a gente faz quando alguém morre?
Eu sei que você pensou em lágrimas, buscou na mente as suas
roupas pretas dentro do guarda-roupa, em telefonemas. Ou então se perguntou:
quem morreu?
A questão é que já tínhamos chorado nossas lágrimas e só eu e
meu padrasto ainda vestíamos preto. Todos os telefonemas e pêsames já estavam
dados e vida que segue.
Numa das nossas primeiras
conversas, ele disse que tem certeza que as pessoas sempre sabem quando estão
prestes a morrer. Ele, Lucas, meu namorado.
Acredito agora. Ele deixou tudo arrumado, doou os livros que
queria doar, saiu ligando para todo mundo e pediu perdão por várias coisas que
nem lembrávamos, convidou amigos para cafés em casa, me escreveu uma carta
maravilhosa que agora não consigo terminar de ler porque sempre choro aos
soluços. Falou até com a minha mãe. Deixou somente algumas poucas peças de
roupas e poucas tralhas, deu fim a todos papeis. Ele fez uma boa faxina e
deixou um testamento. Ele, Márcio, meu pai.
- Posso dormir aqui,
Wagner?
- Não precisa pedir para dormir na sua própria casa, filha.
O marido do meu pai me chamava de filha há anos, desde pouco
antes de meu pai sair de casa e eles começarem a morar juntos. Eu não me
importava, na verdade gosto do carinho e gosto muito do Wagner, mas eu nunca o
chamei de pai.
- Há quanto tempo vocês moravam juntos mesmo?
- Dezoito anos. Você tinha dois anos quando... é. Quer café?
Acho que vou fazer macarrão mais tarde.
Eles estavam juntos há uma vida. Praticamente durante todo o
tempo da minha vida e exato um terço da vida do meu pai.
- Ele era muito novo. Pra morrer, digo.
- Ele lutou bastante, Ofélia. Ele mesmo dizia que se sentia
muito mais velho do que era. Você sabe que detesto clichês, mas ele descansou.
- Agora você não se sente sozinho aqui? Não é estranho?
Wagner suspirou e eu vi seu queixo tremer de leve. Ele foi
para a cozinha rebolando dentro da roupa de luto e jogando uma ponta do
cachecol vermelho para trás.
A vida do marido do meu pai parecia sempre um filme francês.
Wagner era um grande clichê homossexual: carioca de família rica que passou
muito tempo estudando artes na Europa, bebia vinho e dançava tango, lia livros
no original, andava de bicicleta, ia a festivais de cinema que ninguém conhece,
escutava ópera, tinha uma hortinha na varanda do apartamento muito bem decorado
por ele mesmo. Um marido professor de história, meu pai, que pintava uns
quadros meia boca desde que descobriu que tinha AIDS e veio morar aqui.
Meu namorado sempre dizia que esse apartamento era grande
demais. Era mesmo, e um pouco assustador. Escuro por causa dos amadeirados e
cheio de tralhas de viagens, um gato amarelo que vivia escondido e às vezes
surgia nos corredores junto com um susto e um olhar maligno. Um quarto com uma
penteadeira para mim, uma suíte com banheira vitoriana para eles, um quarto
iluminado que meu pai chamava de escritório e ateliê.
Caminhando em direção ao
meu quarto quase podia ouvir a voz de Lucas reclamando.
- Bichas rococós.
O último quadro do meu pai foi também o seu melhor. Não por
ser o último, mas por ser o mais perfeito, evocativo, vivo. Eu o vi somente um
par de vezes e não me atrevia a ver novamente.
Márcio, o pintor, sempre pintava uma mulher. Meu pai sempre
foi muito shakespeariano, até para me escolher um nome. Até pra morrer. A
mulher que ele pintava, vivendo situações diversas, sempre era muito parecida
comigo. Mas, no fim das contas, a mulher era ele mesmo.
No último quadro, que nunca recebeu um nome, há a mulher,
como sempre. Ela está deitada num rio calmo que vem em nossa direção, com os
pés virados para o outro lado e a barriga lisa para cima. A floresta verde e
sombria atrás é quase uma moldura para ela. Vemos uma cabeleira escura e longa
dentro da água, solta e boiando livre, cobrindo os ombros e se confundindo com
plantas. Seu corpo está boiando um pouco acima da superfície apenas das pernas
para trás, pois o restante está levemente inclinado para dentro do rio lodoso. Ela
está um pouco inchada, branca, nua, de olhos abertos e muito calmos, nos
encarando.
Os braços abertos são
o foco. Eles têm um corte vertical cada, fundos e escuros. O rio está com
filetes vermelhos de sangue, muito sangue.
Como meu pai via seu quadro? A floresta e o rio eram verdes,
sombrios. O sangue, rubro. Como ele poderia...?
- Ofélia, o café está pronto – Wagner gritou da cozinha.
- Acho que vou tomar um banho antes de comer.
Seria sombrio demais se eu quisesse tomar banho no banheiro
deles? Quando dei por mim, já estava enchendo a banheira. Quando dei por mim, minha pele já estava
queimada pela água quente, mas eu já estava lá há tempo suficiente para a água
ficar morna.
Por que o quadro precisava de um nome? Você sabe que o nome é
Ofélia.
Desculpa.
“Pérfido, um galho se partiu de súbito,
Fazendo-a despencar-se e às suas flores
Dentro do riacho. Suas longas vestes
Se abriram, flutuando sobre as águas”
Fazendo-a despencar-se e às suas flores
Dentro do riacho. Suas longas vestes
Se abriram, flutuando sobre as águas”
É claro que ele sabia que morreria, Lucas.
Hamlet? Ofélia afogada? Ou Macbeth? Lady Macbeth com as mãos
cheias de sangue, de culpa.
O sangue doente e os remédios que ele parou de tomar. O
quadro pintado como aviso. Previsão? Planejamento.
Na banheira, eu tinha corpo de homem e sabia o que fazer. Na
banheira, eu tinha pernas magras e cheias de pelos e um pênis flácido. E sabia
que tinha uma lâmina de barbear perto da nuca.
Água quente, ai, o rio.
Ofélia!
Os cortes verticais, meu marido que está num sarau de poesia com
seu cachecol vermelho, mas que sempre vejo verde, tudo verde, sempre marrom e
verde. A banheira bege que sei que é amarela tem uma dor aguda e sangue cor de
musgo.
“Como sereia assim
ficou, cantando
Velhas canções, apenas
uns segundos,
Inconsciente da própria
desventura,
Ou como um ser nascido e
acostumado
Nesse elemento; mas
durou bem pouco
Até que as suas vestes
encharcadas
A levassem, envolta em
melodias,
A sufocar no lodo.”
Que cor é essa? É verde ou é vermelho?
Nunca usei vermelho nos meus quadros. Só uma vez.
Nunca dirigi porque as cores do semáforo são iguais.
Um homem aidético que se desculpa, morrendo de pulso cortado
ou afogado. Os olhos que se abrem e veem uma bolha subindo da boca em o:
O-fé-li-a.
Ofélia!
- Ofélia! Sai desse banheiro agora! Abre a porta, puta merda.
- Wagner? – Perguntei, acordando.
-Ai, graças a Deus!
Eu ainda sou uma
mulher. A mulher dos quadros. Mas eu ainda sinto meu pai. Ainda sou Márcio.
Ainda morro na banheira. Ainda tenho uma infecção incurável. Ainda não sei se o
cachecol é verde ou vermelho. Ainda não sei perdoar um suicida.
A mão que abriu a porta do banheiro tinha pulso intacto.
Vi um Wagner revivendo o desespero e tendo o alivio de ver a
porta se abrir de dentro. Fomos naquela noite um Wagner e uma Ofélia num abraço
triste e molhado.
Um Wagner que não
sabia se abraçava Márcio ou Ofélia. Uma Ofélia que não sabia se
abraçava Wagner ou Márcio.
Caramba...Eu me vi dentro do conto, literalmente. A banheira, o sangue...a confusão. A realidade chamando à porta.
ResponderExcluirEu amo as quartas aqui no blog. Sempre um presente maravilhoso que a gente não faz ideia do que será.rs
Esse conto é denso, tenso...e perturbador! Eu adorei...
E mais ainda, as citações poéticas. É juntar o bom e o agradável num lugar só!!!
Beijo
Ual!!! Que cacetada!
ResponderExcluirMe vi criando personagens pra esse conto incrível dentro da minha cabeça...
Mto bacana!
Parabéns!
Bjs!
Olá, Allana.
ResponderExcluirUm conto dolorido e pulsante. Perturbador, até. Foge do comum, o que eu amo.
Sem dúvidas, um excelente trabalho.
Desbravador de Mundos - Participe do top comentarista de maio. Serão três vencedores!
Nossa, que conto intenso, triste e dramático. Esse é um conto que faz a gente parar pra pensar e refletir, nessa caso da dor da morte, das inacertezas e tudo de cruel que esse conto trouxe.
ResponderExcluiré intenso, dramático, com uma pontada angustiante... simplesmente interessante!
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Contos são sempre muito bem vindos, e trabalhos como esse, valem a pena ser lidos e apreciados! Perturbador, triste e forte. Faz a mente fluir e a imaginação trabalhar com os personagens. Gostei muito. Obrigada. Abraços.
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