Dias de um passado esquecido
Mafalda ligou a TV e sentou-se na mesma poltrona velha e
reformada de todo domingo. A louça lavada escorria sobre a pia, a sala estava
arrumada após a bagunça dos netos, o gato ocupava o batente da janela,
observando com ar de cobiça os pássaros na jabuticabeira do quintal.
A cada ano, as rugas de Mafalda aumentavam, como cânions à
mercê do tempo. Os cabelos loiros da juventude desapareceram entre os muitos
cabelos brancos da experiência, mas apesar de tantas mudanças, o domingo era
sempre o mesmo havia cinco anos.
Os filhos insistiam para que ela não trabalhasse. Não
permitiam que saísse sozinha, ou que fizesse a limpeza, contrataram pessoas
para cuidar dela. Aos poucos iam lhe tirando todos os afazeres, como se
temessem que causasse algum estrago à casa ou à ela. Mesmo assim, deixavam que
vivesse ali, sozinha.
Para as amiga, Mafalda enaltecia a solidão adquirida e
contava como ter menos tarefas havia lhe dado mais tempo para ler, cuidar do
jardim e tricotar. Porém, não era isso o que dizia, antes de dormir, para o
retrato de seu falecido marido. A cada noite, as gotas salgadas borravam mais e
mais a fotografia, a prova da solidão que ela sentia.
Naquele dia, Mafalda estava quase dormindo, enquanto
assistia na TV àquele mesmo musical, cujas canções lembrava de cor. Era
engraçado como coisas sem importância como esta lhe eram tão claras, pareciam
encravadas na sua memória, enquanto outras, mais importantes, pareciam se
desvanecer. Foi então que a campainha tocou.
Mafalda assustou. Não era comum receber visitas sem aviso.
Achou que talvez tivesse se esquecido de algum compromisso com uma comadre. De
qualquer forma, era um acontecimento imprevisto, que a deixava insegura. O
gato, ignorando seu receito, já estava na porta, esperando que ela fosse aberta
para escapulir até a jabuticabeira e os seus pássaros.
Quando abriu a porta, a senhora
de cabelos não tão mais loiros fitou pó um tempo o rapaz de olhos escuros que
aguardava do lado de fora.
– Não me reconhece – disse o
jovem, com um largo sorriso.
Aquele sorriso despertou nela um
sentimento esquecido, mas que parecia não lhe pertencer. Ele resolveu acabar
com o mistério.
– Sou eu, João!
Mafalda quase foi ao chão, mas o
moço a segurou pelos braços. Ela não acreditava no que estava vendo.
– Como você está jovem, João! –
ela disse incrédula – Vamos, entre, vou fazer um café para nós.
Ela o puxava pelo braço, enquanto
ele olhava para aquela casa que havia mudado tão pouco desde a última vez que
esteve ali.
– Deixa que eu faço o café – ele
disse enquanto a colocava em uma cadeira na cozinha.
João parou e tentou imaginar onde
estariam os utensílios que iria precisar. Ele olhou para trás e viu Mafalda com
um sorriso apaixonado.
– Onde você guarda as coisas para
fazer café? – disse ele.
Mafalda murmurou para si:
– Armário, café, amarelo.
E então disse:
– Eles ficam no armário com o adesivo amarelo.
Ele abriu o armário e junto ao pó de café, coador e xícaras,
uma cartela de remédios vazia. João entendeu o motivo do estranho comportamento
de Mafalda.
– João –, disse ela –, o que você está fazendo aqui?
Ele riu e disse:
– Estou fazendo nosso cafezinho.
Mafalda recordou do senso de humor de João. Ele era simples,
mas sabia fazê-la rir, ao contrário de seu falecido marido, um homem de
paciência curta. Ela não parecia se importar com a jovialidade dele. O sorriso
nunca abandonava seu rosto. Já João a olhava com certa tristeza. E então, tudo
mudou.
– Há cinquenta anos você embarcou naquele trem e nunca mais
voltou – disse Mafalda com os olhos agora marejados. – E agora está aqui de
volta, como se nem um dia tivesse passado. Está jovem, bonito, cheio de vida.
Mas eu envelheci, João... A minha memória me trai. Nem sei mais se eu realmente
te conhecia ou se você faz parte de algum filme que assisti na TV...
João terminou de preparar o café em silêncio e sentou-se na
frente de Mafalda, enquanto ela olhava para o vazio, os cabelos revoltos como
um halo prateado em vota de sua tez branquinha.
Finalmente, ele suspirou e
disse, enquanto servia o café para ela:
– Você está enganada, Mafalda. Você continua linda e estou
aqui. Por você.
Mafalda secou os olhos. Na mesa, duas mãos enrugadas se
tocavam pela primeira vez depois de meio século. Ela passou o dedo sobre a
marca funda de um anel ausente no dedo anular de João. Ele apertou a mão dela
carinhosamente.
– Nós dois seguimos caminhos diferentes, disse ele.
– Mas agora podemos seguir caminhos iguais, disse ela,
voltando a sorrir.
Mafalda passou o resto da tarde contando historias de seus
netos. Às vezes ela as repetia, mas ele fingia que as ouvia como se fosse pela
primeira vez. João, que já não tinha mais a saúde da juventude, sabia que
aquilo era mais do que ele poderia aguentar e notou que Mafalda estava sendo
bem cuidada.
Ao final da tarde, os dois se despediram na soleira da porta
com um beijo no rosto. João partiu com a promessa de que voltaria no dia
seguinte com suas coisas. Felizmente, a doença de Mafalda a impediu de sofrer
com a mentira, quando ele pegou o mesmo trem mais uma vez e nunca mais voltou.
Puxa :(
ResponderExcluirEu vi tanto meus avós nesse conto. Os filhos hoje em dia, acabaram tirando tudo que lhes faziam felizes. Os pequenos momentos deles..fazer um café, arrumar um armário, sentarem ao sol. Ambos estão na cama...e ainda por cima, separados pela doença que cada um carrega.
Eu me peguei pensando o quão injusto é isso..o quão dolorido deve ser a eles, se tiverem algum momento de lucidez.
Essas pequenas mentiras, essas grandes mudanças.
A tristeza...e o não saber do que é real ou não.
Felipe, você me fez chorar feito criança...
Obrigada, de coração, obrigada!!
Beijo
Belo e triste conto, principalmente o fim. Afinal, sabemos que muitas vezes a doença rouba coisas que temos de mais precioso: as memórias.
ResponderExcluirUm conto grandioso, sem dúvidas. Adorei!
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Aaaai lágrimas rolando no meu rosto...
ResponderExcluirQue triste mas lindo dmais! Me lembrou meus avós tbm...
Que sdds!
Felipe, parabéns!!
Eu amei...
Bjs!
Poxa, que conto lindo e emocionante. Senti uma tristeza pelo senhorinha, que pelo jeito seguiu um caminho e que se arrepende no final. Uma historia pra se refletir e imaginar o que estamos fazendo, se é o que queremos ou não.
ResponderExcluirParabéns Felipe!!
é triste e emocionante ao mesmo tempo, é tão duro se perder quem se ama dessa forma, por abandono, mas ao mesmo tempo é emocionante que ela tenha tido a oportunidade de reencontrar e ao mesmo tempo não sentir a perda outra vez
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Oi Felipe!
ResponderExcluirMeu Deus que conto triste :O
Juro que me emocionei bastante, vi muito de minha bisavó em Mafalda, e entendo que infelizmente é assim que a velhice aconteça (triste, mas compreensível)! Incrível! Parabéns.
Olá. Um conto muito triste, mas muito real e emocionante. Não tem como , de alguma forma, não identificar alguém próximo de nós, ou uma situação vivida no passado. Muito profundo, verdadeiro e doloroso. Faz refletir...Parabéns. Abraços.
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