Tô Pensando em contos... Guaracir, o filósofo





Guaracir, o filósofo





     Era a terceira vez que ia à casa do namorado, e primeira vez sozinha.


     Prestava atenção em cada detalhe, procurando-os na memória: casa amarela, muro com um cachorro pichado, o pet shop mais ali, vira a direita... Tomou um pequeno susto: a rua pela qual deveria passar estava sem iluminação. Um breu de árvores e uma fábrica. Nem para ter casas ou comércio.


     Maldito dia que enrolara para sair de casa. Por que diabos esperar anoitecer? Mulher sofre.


     Como não conhecia outro caminho, escolheu mandar uma mensagem ao namorado, voltar e esperá-lo no pet shop.


     Mal pôde dar um passo.


     Uma mão surgiu do escuro, mão grande e forte segurando seu braço. Mão de calos e grossa, descascada. Aquilo deixaria marca, ela soube de imediato. Alguém virou seu corpo com facilidade.


     Ela o viu, sujo, de olhos escuros a encarando. Como um velho podia ter tanta força? Era o que faltava: ser assaltada por um senhorzinho de cabelo branco e ralo.


     Ele sorriu com seus poucos dentes.


     - Ei, mocinha bonita... Você não é daqui, é, não é não.


     Pior, podia não ser um assalto. Ele podia agarrá-la bem ali mesmo. Ajeitou a saia para baixo com a mão livre, cobrindo as coxas, e puxou o braço; ele a segurou com mais força. Ela sentiu a adrenalina ser descarregada acima dos rins, um frio na barriga. Sentiu a tremedeira involuntária.


     - Vou gritar, me solta - disse feroz.


     - Não precisa, viu mocinha. Só queria uma ajuda.


     Pronto. Um pedinte. Ou ainda um tarado da pior qualidade.


     - Não tenho nada, me deixa.


     - Não pedi dinheiro. Eu só queria que você respondesse umas perguntas.


     Ué.


     - Você acredita em Deus?


     Ótimo, um fanático. Menos mal. Ou não. Ele estava muito perto de seu rosto; a moça procurou notas de cheiro de álcool e surpreendeu-se de não encontrar. Ele tinha cheiro de tempo, suor, sujeira, urina, mau hálito, mas não de álcool.


     - Acredito - mentiu sem convicção. O coração batia tão forte que sentia a pulsação latejar atrás das orelhas.


     - Que coisa. Pois não deveria. É um atraso, é, é sim. Tempo é mais importante, sabia? É tudo que a gente tem, você é jovem, uma jovem bonita. Ouça o velho Guaracir, largue mão de Deus e persiga o tempo, é o único que vale alguma coisa, é, é sim.


     Ela continuava a olhá-lo com medo, mas um medo diferente.


     - Você tem filhos, mocinha?


     - ... Não...


     - Mas que coisa. Um dia vai ter, não vai demorar, é. Guaracir sempre sabe dessas coisas. Guaracir teve um filho, sabe. Ele morreu, imagine só. Uma pena, era jovem, mocinho como você - Guaracir havia afrouxado a mão, mas quando ela tentou sair, ele apertou seu braço de novo.


     - Sinto muito - ela disse rouca.


     - Não sente não, não sente, é. Mocinha não tem filhos, mocinha não sabe. O filho do Guaracir viu o rosto do tempo e teve medo, medo medo medo medo, é - ele falava alto - E então pegou a arma do amigo policial e BANG, PÁ, BEM NA CABEÇA - Guaracir gritou e riu, um riso triste e histérico.


     - Se a mocinha acredita em Deus, acredita em alma – Guaracir continuou - Uma bobagem, não perca tempo de vida, nada vale a pena e nem faz sentido, quanto mais cedo você aceitar isso mais fácil vai ser, você sofre menos, lamenta menos. Alma não existe, é bobagem, só existe o corpo e as coisas, o resto parte daí. Treinamos o corpo para dar condições de pensarmos melhor; o corpo nunca esquece, sabe? “Existência antes de essência”, é verdade. Guaracir não disse isso, quem disse foi Nietzsche. Ou foi Sartre? Ah, tanto faz... Diz um número aí, diz, qualquer número, fala aí.

     - Me solta, seu maluco!

     - Maluco? Mas mocinha, ser lúcido dá muito trabalho, dá sim, lucidez é medo, medo de ficar louco o tempo todo, é limitante. Não, não, pensar de verdade não nos deixa ser bons das ideias. Todos querem ter razão, mas nunca demais, é sim. Por falar nisso, você sabia que Descartes era um idiota? Hihi. Ele...

     - Guaracir! Solta a menina, vai...

     Um milagre: uma voz familiar saindo da escuridão. Era a voz do namorado da moça, ao fim da rua.

     - Ela é minha namorada, Guaracir... Sou eu, tudo bem.

     O rapaz aproximou-se, apressado. O velho finalmente soltou a garota e saiu resmungando.

     - Ele te assustou? Não se preocupe, ele é só um mendigo que mora por aqui, é inofensivo, mas fala umas coisas engraçadas...






























5 comentários

  1. Quem dera todos os malucos citassem Nietz ou outro grandioso, só para não enlouquecerem de vez em sua vida momentânea.
    Mas cá entre nós? O mundo está repleto de grandes "malucos" assim, escondidos nas sombras, esperando somente uma pequena oportunidade, para soltarem suas amarras engraçadas e com isso, jogarem um pouco de lucidez em toda essa insanidade!
    Adorei!!!
    Um conto filosófico de primeira!
    Beijo

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  2. Allan!
    Andamos tão amedrontados com a violência e nem prestamos atenção nos menos favorecidos, vamos logo os dispensando e o medo fica crescente.
    Guaracir é um 'louco' bem inteligente...
    “Natal não são as luzes lá fora, mas a Luz que brilha em seu coração... Feliz Aniversário, Senhor!” (Daniela Raffo)
    Boas Festas!
    cheirinhos
    Rudy
    http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
    TOP Comentarista de DEZEMBRO ESPECIAL livros + BRINDES e 4 ganhadores, participem!

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  3. que lucidez na aparente insanidade! demais
    http://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/

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  4. Gostei do conto, acho que esse louco e mais inteligente de que muita gente que eu conheço.
    Beijos

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  5. Gostei do conto, como todos os outros que li por aqui, mas confesso que não me senti tão proxima desse. A ideia de filosofia é interessante, mas sei lá. Ainda assim, foi bem escrito.
    Um abraço!

    http://paragrafosetravessoes.blogspot.com.br/
    Participe dos SORTEIOS que estão rolando lá no blog!

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