TRAVESSIA
Andava pela ruazinha escura e sentiu medo.
Agora que o sangue esfriara e já estava longe de casa, começara a prestar
atenção em outras coisas. Uma delas era o rio ao lado, escondido no breu, mas
perceptível pelo ruído cruel e o frescor que trazia à pele quando se chegava
mais perto.
Gui não teria medo. Ele certamente não tivera
medo.
Gui era seu irmão mais velho, seu herói, a
melhor pessoa que ela conhecia. Ele não a tratava como criancinha: tinha 8
anos, ele 15, mas conversava com ela sem achá-la boba e escutava de verdade
quando ela falava. Gui era inteligente, lia várias coisas e a ensinou a
escrever.
Ele tinha fugido há algumas semanas e ela
sentia muito sua falta. Queria contar a ele como mamãe estava triste porque não
sabia onde ele estava. Tio Berne estava mais difícil que antes, se é que isso é
possível. Ela ia procurá-lo e dizer para ele voltar para casa, porque tinha
medo do tio Berne bater nela e na mamãe outra vez. Aguentara calada porque o
Gui também apanhava do tio Berne quando ele chegava em casa com o rosto
vermelho e aquele cheiro ruim na pele. Estava ficando cada vez mais frequente e
tinha piorado quando Gui fugiu. Gui disse que estava indo embora para melhorar
as coisas e ser mais feliz, mas as coisas em casa não estavam melhores. Queria
ver se ao menos o irmão estava mesmo mais feliz.
“Se eu conseguir, te mando um sinal”, ele
prometeu. Até agora, nada.
Mamãe
estava esquisita. Já era uma mulher quietinha, quase nunca sorria e olhava para
o tio Berne sempre com tristeza. Tio Berne era marido da mamãe desde que ela
conseguia se lembrar, mas o Gui dizia que ele não era pai deles e falava coisas
feias. Quando Gui fugiu, eles a mandaram para a casa da tia Madalena por uns
dias e quando voltou, mamãe não saia do quarto e só ficava chorando. Tio Berne
ficou com o rosto muito vermelho e com o cheiro na pele muito mais forte.
Quando tentou explicar que Gui estava bem,
mamãe chorou muito e tio Berne deu um sopapo nela.
Agora, só queria achar o irmão e pedir para
ele voltar. Na noite em que fugiu, ele a abraçou, pediu para ela guardar
segredo, vestiu um casaco e disse que estava indo embora da cidadezinha.
Ela estava partindo também: saiu escondida
depois que todos dormiam. Aqui era longe de tudo: mais árvores e menos casas.
Tinha que atravessar o rio para ir para outra cidade. Gui atravessou o rio e
não teve medo. Ela colocou o pezinho e a correnteza forte levou seu sapato
rasgado que um dia fora vermelho.
Gui era corajoso. Ela também era. Tinha que
ser. Entrou no rio e perdeu o pé: era fundo, não sabia nadar e a correnteza era
forte, tão forte que logo entrou na boca e não a deixou gritar. Não estava mais
com medo, estava procurando por Gui, tinha que encontrar o Gui do outro lado,
Gui, ela não parava de dizer, me espere.
Não demoraram a encontrar o corpo da criança
no rio; há um mês tinham encontrado quase no mesmo lugar o corpo do irmão
adolescente com pedras nos bolsos do casaco.
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:(
ResponderExcluirSou apaixonada por contos. Em todos os gêneros e afins. Mas há uns que parecem uns livros, tão pequenos e com tanto conteúdo.. Que conto triste e ao mesmo tempo, grandioso. Beleza, simplicidade e até ternura, em cada letrinha.
Amei de coração!!Só faltou dizer quem foi o autor(a)..rs
Parabéns!!!!
Ah...eu amo esse post!
Beijo
Li um conto aqui e nunca mais me esqueci dele, por isso quando vi esse poste já vim correndo ler, pois sabia que o conto seria super interessante, e realmente foi. Contos como esse nos faz refleti, e pensar o quanto a vida hoje está difícil, muitas pessoas passam por momentos complicados em casa, não vou negar que tive vontade de salvar essas pessoas, parabéns por esse conto.
ResponderExcluirO final desse conto foi bem pesado, mas gostei dele ainda assim. Ele faz refletir sobre a realidade dura que algumas pessoas enfrentam.
ResponderExcluirDesbravador de Mundos - Participe do top comentarista de abril. Serão três vencedores!
Oh que triste. Esperava um final feliz, mas entendo essas crianças, coitadas. Só viviam sofrendo e vendo a mae sofrer. Elas foram corajosas. Infelizmente é a realidadende muitos.
ResponderExcluirBom dia !
nossa, feito pra chorar, que aperto que deu!
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Allana!
ResponderExcluirAi que conto triste... porém, mostra a realidade de muitas crianças espalhadas pelo Brasil.
Muito bem escrito...
“Quem de manhã compreendeu os ensinamentos da sabedoria, à noite pode morrer contente.” (Confúcio)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
TOP Comentarista especial de aniversário em abril: com 6 livros 5 ganhadores, participem!
Boa tarde Allana,
ResponderExcluirQue conto maravilhoso e que final é esse? Meus parabéns e obrigado por presentear com ele.....bjs.
http://www.devoradordeletras.blogspot.com.br/
Vixiii...até me arrepiei!
ResponderExcluirQue conto maravilhoso!
Parabéns!
Nossa realidade ali de fora...
Mto bom!
Bjs!
Allana,o seu conto é forte,denso e o final é tragicamente dramático , triste,mas isso não tira a destreza que nos prende ao longo das linhas para saber o final,além é claro de nos fazer intimamente refletir sobre quantas crianças vivem essa realidade em seus lares,no dia a dia de suas vidas ,às vazes também tão curtas e imensamente dolorosas.Beijos!
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