MAÇÃS
O velho Ford Ka roncava pela
estrada no ar seco de setembro. O inverno não dera as caras aquele ano,
dificilmente registrando temperaturas abaixo dos 27ºC. Somado a um verão sem
chuvas e um outono igualmente pobre de precipitações, aquele inverno prometia
ser um dos piores das últimas décadas. Era fácil ver isso.
Os mirrados rebentos da lavoura
daquele ano ladeavam a BR-327, meros caniços de meio metro de altura nas
plantações de cana. Grandes trechos ainda apareciam calcinados dos incêndios
oportunistas da estação, comuns em tempos de seca naquela região. O ar
condicionado ligado no máximo, Lucas começou a sentir a garganta secando só de
observar a paisagem árida.
As garrafas de água que trouxera
consigo de casa estavam agora todas espalhadas pelo assoalho do carro. Quando
saíra de casa pela manhã, não previra o tempo que passaria parado no trânsito
da saída para o feriado. Bebera toda a água antes de sair da metrópole, e agora
se dirigia para o sítio da família com a cabeça latejando, o suor da testa
ardendo nos olhos e uma náusea que ia e voltava.
Aos 22 anos, apesar do passado
rural, Lucas era mais afeito às paisagens urbanas do que aos campos da fazenda
do tio, preferindo passar os feriados nos bares da Augusta ao lago onde nadara
quando criança. Feriado era para curar ressaca, não revisitar o passado
dourado.
E que ressaca! O mundo girava ao
redor da sua cabeça, as mãos tremiam ao volante, a língua inchada era uma
esponja na boca seca, onde, fantasmas da noite anterior, os sabores da vodca
com energético se misturavam aos de cerveja e maconha. Para exorcizar essas
assombrações do paladar, as garrafas de água foram sacrificadas inutilmente,
agora secas e jogadas como defuntos drenados por vampiro.
A bem dizer, Lucas não teria
saído da cama se não fosse pelo velho tio. Entrevados na cama por mordida de
cobra – em pleno século XXI! –, os dois metros de Eduardo
Antão mandaram chamar pelo sobrinho que criara ali, sob os laranjais, seu único
herdeiro restante, ou o mais próximo disso. O amor pelo tio superou o amor pela
cama, e Lucas pôs-se a correr pela estrada, sol de rachar ou não.
O amor pelo laguinho perene das
terras do velho Antão era outro que agora falava bem forte ao pé do ouvido.
Relembrava as tardes refrescantes com a prima Natália, as brincadeiras de
criança se tornando em malícias adolescentes conforme o biquíni da garota se
tornava pequeno para esconder os contornos da mulher nascente, antes mesmo os
anunciava. À guisa de proteger a pele da prima, longe dos olhos do velho,
muitas tardes passara o protetor solar pelas curvas suaves da prima, deixando-a
brilhante sob o sol de verão após vários momentos apalpando pelas partes mais
cheias da garota. Vinha-lhe a visão forte do dia em que a prima, de rosto
afogueado, virara-se no meio de uma dessas sessões e o agarrara, levando-o pela
sunga para trás de uma das laranjeiras.
Na sombra daquela árvore, várias
tardes foram dedicadas aos prazeres dos dois. Era o velho descuidar que Lucas e
Natália sumiam, reaparecendo horas depois com os cabelos cheios de folhas.
Lembrava vividamente daquela primeira tarde. A timidez dos dois, as costas da
prima encostadas ao tronco áspero, o aperto molhado e delicioso em seu membro,
a respiração dos dois em arquejos, as folhas balançando com seu ritmo
descompassado, o êxtase precoce e o desapontamento da prima.
O ato se repetira muitas outras
vezes, sempre sob a sombra da mesma laranjeira. Seu tronco alto e áspero
servindo de esconderijo e alcova para os primos. Podia vê-lo mesmo agora, como
se estivesse ali na frente, na beira da estrada, uma memória tão viva quanto o
calor escaldante do dia. Contaria cada folha se quisesse. Bateu o Ford Ka na
árvore à beira da estrada.
Por sorte, os delírios com a
prima – dormira ao volante? – fizeram com que pisasse leve no acelerador, indo
bater na árvore a uma velocidade não muito alta. O eixo de direção estava
totalmente entortado, o para-brisa rachara onde sua testa batera, mas nada de
permanente lhe acontecera. Ou à árvore.
Não era uma laranjeira, aliás.
Era uma macieira. Pendiam de seus galhos frutos extremamente vermelhos – era
época de maçãs? – tais quais jamais vira fora de desenhos animados. A bruxa de
A Branca de Neve não poderia querer fruto mais convidativo. Pegou uma para se
acalmar do choque.
A fruta era de uma suculência incrível.
Descia-lhe pelo cavanhaque ralo um sumo tão rico e saboroso que por pouco não
era cidra. Nada fazia para aliviar a sede, entretanto. Olhou para a fruta.
Tinha por dentro um tom de amarelo um tanto róseo, com pequenos veios
avermelhados aqui e ali. Estranho. Mas continuava a melhor maçã que já provara.
Não lembrava de macieiras no
caminho para o sítio do tio. Confuso, pegou o celular para consultar o GPS sob
a sombra de uma macieira, protegendo-se do sol que ainda queimava o chão
esturricado à sua volta. Sem sinal.
- Valeu, TIM– grunhiu.
Podia ver mais à frente,
espalhadas de modo bem esparso no começo, uma grande sombra verde adiante,
macieiras como aquela em que batera seu carro. Sem mais o que fazer, pôs-se em
seu caminho. Uma hora alcançaria um restaurante de beira de estrada, ou seria
passado por algum viajante de quem pudesse pegar um telefone emprestado e
chamar um guincho para o Ford Ka. Depois seguiria viagem para o sítio de
Eduardo Antão.
O chão continuava morto, preto,
sem sequer gramíneas por quilômetros a perder de vista. As tais árvores, um
tanto retorcidas, diga-se de passagem, eram a única vegetação que via. Únicos
seres vivos, aliás. Nenhuma delas era exatamente alta, ele percebeu conforme
avançava. Em sua maioria, não chegavam aos 2 metros e tinham, invariavelmente,
uma raiz bifurcada e dois galhos principais dos quais galhos menores se
ramificavam para formar a copa. Começavam a surgir em tamanhos variados e em
grupos de 2 e 3, ali na frente 4. Nestes casos, era comum que houvesse uma
árvore maior, seguida por uma ligeiramente menor e outras, praticamente anãs.
Todas produzindo, no entanto. Uma mais carregada das maçãs surreais do que a
outra. Pegava algumas a esmo, só para se distrair da sede e da dor de cabeça,
metade ressaca, metade para-brisa.
O casebre estava lá, rodeado
pelas macieiras. Encontrara-o depois de uma hora de caminhada sob a sombra
baixa mas constante das árvores. Já trazia os tênis sobre os ombros e a
camiseta pendurada à cintura. Os pés tocavam o chão de terra do acostamento, o
solo agora mais escarlate do que preto. Bateu palmas encostado à janela que
dava para a estrada.
- Ô de casa! – chamou – Tem
alguém aí?
A janela se abriu de pronto,
batendo suas folhas de madeira com ímpeto um tanto violento. Uma cabeça curiosa
de criança espiou para fora.
- Oi, moço. O sinhô tá perdido?
- Como é que você sabe, mocinha?
- O sinhô é da cidade. Gente da
cidade tá sempre perdida.
- Menina esperta – ele riu – e
como sabe que sou da cidade?
- Branquelão e fracote assim? Só
pode sê da cidade, uai! Hômi de verdade é queimado de sol, que nem o meu pai!
- E cadê o seu pai, menina?
- Ele saiu. Foi catá maçã. Isso
tudo é terra dele.
- E por acaso você não tem um
telefone que eu possa usar? Preciso pedir ajuda. Meu carro bateu.
- Tenho não. Qué dizê, tenho, mas
num posso deixa estranho entrá.
- Isso é certo –ele concordou –
Meu nome é Lucas, e o seu?
- Deméter – respondeu a menina –
Papai tem mania de estrangeiro.
- Muito prazer, Deméter. Agora
não somos mais estranhos.
- Gardecida, moço, mas ainda num
posso deixa o sinhô entra sem orde do pai.
- E quando ele volta? – perguntou
disfarçando mal a impaciência.
- Vai demora. Tudo isso é tedade
do pai, e ele precisa escoiê as melhores maçã.
- Será que pode me dar um copo
d’água então? Estou com muita sede.
- Água não tem – retrucou Deméter
– cabou faz tempo por essas banda, mas tem suco de maçã.
- Pode ser.
A cabecinha encaracolada foi e
voltou com um copo transbordando suco.
- Pode ficar com o copo. Toma e
vai andando que o pai não gosta que eu dê confiança a moço da cidade – e fechou
a janela com um golpe.
Copo na mão, Lucas seguiu viagem.
O suco era de um tom mais avermelhado do que cristalino, mas era tão bom quanto
as próprias maçãs. O gosto ligeiramente férreo passava despercebido para a sua
ressaca. Começava a sentir um endurecimento das juntas, culpa do cansaço. Bebeu
mais. Os pés pareciam perder a vontade de caminhar, resistindo mais a cada
passo, relutando em deixar o chão. Bebeu mais do suco, deixando-o escorrer pela
barba. Estava engrossando, não? Era bem mais rala hoje cedo, ele percebeu ao
passar a mão pelo rosto. Ou seria sua mão? Sua pele já tomava tons mais escuros
com o sol. Terminou o suco.
A um quilômetro do casebre, o
velho encontrou-o, paralisado.
- Eu sempre disse que gente da cidade
não durava muito – comentou para Deméter.
- Verdade, pai.
- Gente da cidade tá sempre
perdida por aqui.
- E dão umas maçã tão mirradinha,
né pai?
Bruno Catão
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Eu aguardo ansiosa pelas quartas!!! E é sempre uma surpresa diferente!rs
ResponderExcluirOra, contos que ensinam, ora, contos doces e suculentos como lindas maçãs!
Adorei, preciso dizer mais alguma coisa?rsrs
Beijo
Bom dia Bruno,
ResponderExcluirKKKKK...coitado moço da cidade, só aproveitou as maçãs, coitado do Ford KA bateu nesse fim de mundo.....kkkkk....o moço só andou um pouquinho e pegou um solzinho e não aguentou....kkkkk.....gostei demais do conto, deu vontade de comer e tomar suco de maçã...parabéns.
Abraço.
http://www.devoradordeletras.blogspot.com.br/
Excelente conto. Gostei bastante do contraste dado pela oposição cidade e campo.
ResponderExcluirAdoro essa coluna do blog!
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Olá!
ResponderExcluirAdoreeeei!!
Anciosa para o próximo!
Bjs!
Gosto bastante de leituras que prezam a linguagem de cada regiao. Eu nunca tomei suco de maçã kkkkk e pelo jeito nessa casa só serviam isso. Achei o conto bem divertido.
ResponderExcluirBoa tarde!
Olá Lelê e Bruno, o conto é bem bacana... achei divertido e interessante com um toque mórbido, parabéns pela criatividade
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Eita Bruno!
ResponderExcluirExtrapolou na criatividade, hein?
Agora estou com medo de comer maçãs...kkkk
“A sabedoria começa na reflexão.” (Sócrates)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
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