DENTISTA
Como todas as noites, cheguei ao consultório às 23h. Nunca
tive um paciente que chegasse antes da meia-noite, então eu usava esse tempo
para me preparar. A maioria dos dentistas não trabalha assim tão tarde, mas a
maioria dos dentistas também não atende vampiros.
Eu não os culpo por isso. Não é como se tivesse uma optativa
na faculdade voltada ao cuidado dentais de vampiros, lobisomens e outros seres
noturnos. Eu simplesmente me vi com um diploma de dentista na mão durante uma
crise econômica e quase nenhum talento que me diferenciasse das outras quarenta
pessoas que se formaram comigo naquela turma da Unicid. Quase nenhum talento.Entre os estágios e
trabalhos de faculdade, eu arranjei um bico como segurança num banco de sangue
em Pinheiros. Aprendi bastante coisa ali, mas especialmente sobre as pessoas
que faziam retiradas.
Janine, minha estagiária, chegara antes de mim e já havia
preparado os cordões de cabeças de alho – duas voltas pra ela e duas pra mim –
e renovava a prece sobre a torneira da pia quando eu entrei. Foi ideia dela
que, ao invés de batizar cada garrafa de água benta, instalássemos de uma vez
uma torneira benta. Lavei as mãos e o rosto com a água da torneira abençoada e
enchi meu cantil.
Ora, não pense que confio em vampiros só porque trabalho com
eles! Você não esperaria que um veterinário cuidasse de um tigre sem uma arma
de tranquilizantes por perto, não é mesmo?
Colocamos nossas cruzes nos pescoços. Nós as usávamos
grossas e rústicas, do tipo que monges carregam nos filmes de Hollywood. Aprendi no banco de sangue que o importante
era que ela ficasse bem aparente. A sua fé pode não ser forte o suficiente para
espantar o vampiro, mas ele não precisa saber disso.
—O paciente chega à meia-noite, não é?
—Talvez. — respondi. — Ele gosta de ser dramático, então
pode ser que apareça assim que o relógio bater meia-noite, mas também é do tipo
que se acha importante. Pode ser que nos faça esperar.
—É um cruzamento perigoso, esse. Será que as defesas normais
vão funcionar?
—A água benta e o alho devem ser suficientes. Eu ficaria com
a sua besta por perto. E esconda sua carteira, claro.
É muito comum que certos tipos de pessoas sejam atraídos
para certas profissões. O mesmo acontece com as criaturas da noite. O homem
mais bem-ajustado que eu conheço é um açougueiro da Lapa que também é
lobisomem. Uma vez por mês ele precisa usar algumas redes de cabelo a mais.
Por volta das duas da manhã, ouvimos uma batida na janela do
consultório. Peguei uma estaca na gaveta e abri a janela, convidando o paciente
a entrar.
Uma revoada de morcegos se jogou para dentro do consultório,
coalescendo na forma de um homem de cabelos brancos, cara de quem chupou limão
e uma faixa verde e amarela com a qual ele não parecia estar acostumado. A
faixa também não parecia confortável com ele.
Conduzi o paciente à cadeira, Janine a todo momento com sua
besta engatilhada e apontada para o coração da criatura, presumindo que tinha
um.
—Formalidades. — Ela disse, dando de ombros. A criatura,
desesperada pelo atendimento, resmungou algo e sentou-se à cadeira.
Eu reconheci os sintomas assim que a criatura entrou no
escritório. Os lábios repuxados num bico, o modo servil como se arrastara até a
cadeira. Acontece de vez em quando, quando o vampiro é burro o suficiente para
esquecer que um palito de dentes nada mais é que uma pequena estaca de madeira,
e acaba com uma farpa alojada na gengiva. Não mata, mas dói pra burro.
—Abra a boca, senhor presidente. — Não vou dizer mais que
isso sobre a identidade do meu paciente. Os vampiros pagam bem, e quando me
confiam seus segredos, quero que saibam que não têm nada a Temer.
Hahahaah Genial!!!!
ResponderExcluirNão há outra forma de definir este conto, genial demais!
Pena que para nós, meros humanos, as estacas, cruzes e água benta não andem resolvendo nada contra esse ser trevoso.
Beijo
Arrasou Bruno!!
ResponderExcluirkkkkk adorei!
Concordo com O Vazio na Flor, pra gte resolver a situação que o país vive precisamos mais que estacas e águas bentas, eita que tá cada dia mais difícil!
Bjs!
Oi, Bruno!!
ResponderExcluirAmei o conto e a analogia entre os seres misticos como o vampiro e o governo que nos suga de várias maneiras..
Bjoss
Eu não acredito!! ahahahahahha Li achando que seria uma coisa e fui surpreendida pelo bom humor e criatividade. Parabéns Bruno, posso dizer foi inusitado. Quanto a situação política atual? Melhor não estragar o momento de descontração desse conto.. deixamos para um próximo por do sol ;)
ResponderExcluirMuito bom. Um conto dinâmico,divertido e surpreendente (no bom sentido)kkkk Você tem o talento de em poucos linhas nos passar o que muitos autores não conseguem em um livro inteiro. Parabéns Bruno.
ResponderExcluirBruno!
ResponderExcluirGenial!
Me acabei de rir...kkkk
Boa referência ao momento do país.
Parabéns!
“O meu objetivo é colocar no papel aquilo que vejo e aquilo que sinto da mais simples e melhor maneira.. “(Ernest Hemingway)
cheirinhos
Rudy
muito bem elaborado e mais uma vez um show de escrita!!
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com/