REFLEXÕES
O marido dela saiu para trabalhar logo cedo, não deve voltar
até umas oito da noite. Ele faz o tipo fortinho e arrumadinho, cabelo cortado à
máquina. Deve ser soldado da Polícia Militar, talvez sargento, qualquer coisa
do tipo. Não sei direito, mas não faz diferença. O importante é que ele não
está em casa, enquanto ela está, e eu também.
Não sei dizer há quanto tempo nos conhecemos, mas “desde
sempre” parece um bom chute. Não consigo lembrar de um tempo em minha vida em
que ela não estivesse por perto, e duvido que ela se lembre de um dia em que
não nos conhecêssemos também. Ou mesmo de um em que não nos tenhamos visto. Eu
poderia acreditar se dissessem que nascemos ao mesmo tempo, uma para a outra.
Nada seria mais justo neste mundo, posso garantir.
Agora ela está aqui comigo. Aqueles lábios enormes sorriem
para mim. Quase não se percebem os dentes bem alinhados em suas fileiras
brancas, não com aqueles lábios vermelhos e carnudos sorrindo cheios de
promessas maliciosas. Respondo seu sorriso imediatamente com outro muito
parecido.
Idêntico, a bem da verdade, fora o leve toque de saudade que não pude
deixar de sentir. Será que ela percebeu? Será que sente falta? Foi-se o tempo
em que aqueles lábios tocavam desajeitadamente os meus, deixando meu rosto todo
manchado de batom.
Era estranho, mas mesmo então sentia que havia uma fria
barreira entre nós.
Ela tem o tipo de cabelo cacheado que faz com que qualquer
um queira enterrar fundo os dedos naquela cabeça dourada, e sabe disso. Ela
afasta do rosto um dos cachos molhados, sem nunca deixar de olhar em minha
direção, mas – de um jeito só seu – sem me dar muita atenção. Sem perceber,
também mexo em meu cabelo. Puro reflexo. Nada que eu pudesse ou quisesse
controlar.
Os cabelos molhados caem sobre seus seios nus, que deixam
claro que sentem frio. Muito parecidos com os meus, os mamilos intumescidos
apontando para o meu rosto são convidativos, aliam-se muito bem aos cabelos
molhados e lábios sacanas numa tentação insuportável. O convite lascivo não se
estende aos seus olhos, percebo. Minha vontade é de agarrá-la aqui e agora,
apertar nossos corpos nus um contra o outro, penetrar sua carne, fazê-la minha,
dominá-la e ser dominada, ser sua, somente sua, para mandar e ser mandada. Mas
não me movo.
Eu espero. Nenhum movimento partirá de mim, somente dela.
Não é da minha natureza. Não faço o tipo que toma a iniciativa, não importa o
quanto queira – e caramba, como eu quero neste momento. Mas não consigo. Fico
paralisada deixando que me atice, que exiba suas curvas deliciosas, seu corpo
molhado e arrepiado brilhando no frio. Incapaz de me mover senão por sua
vontade, eu espero, aguardo, desejo seu toque como nada mais neste mundo.
Ela se aproxima. Ensaia um passinho sensual, rebolando
aquela bunda apetitosa ainda pingando do chuveiro e vem em minha direção. Sua
respiração se torna rápida e entrecortada, sua boca se aproxima da minha. É
agora, eu penso. Finalmente ao meu alcance, vamos uma em direção à outra, os
lábios quase juntos. Como eu esperei por esse momento, mas finalmente voltarei
a tocá-la...
Um telefone toca num cômodo ao lado e ela corre para
atender, traindo o nosso momento. Sozinha, no banheiro, não sei como agir. Este
é o seu efeito sobre mim. Como se minha existência fosse inextrincavelmente
ligada à sua, inconcebível de outra forma. Talvez seja. Não consigo me lembrar
de um tempo em que não a tivesse em minha vida. Não consigo imaginar o que eu
faria sem ela por perto.
Um grito vem do cômodo ao lado. Existe agonia naquele grito,
mas outras coisas também: raiva, medo e desespero se misturam num uivo animal.
Ela volta para mim, as lágrimas fluindo aos borbotões por olhos vermelhos. Com
a visão turva, ela me esmurra.
Sangue. Sangue flui da sua mão e da minha testa rachada. Ela
grita, agora de dor e fúria, e me ataca novamente. Uma, duas, três, quatro
vezes, até que o espelho se despedaça e eu me multiplico em vários pedaços pelo
chão. Ela grita e, espalhadas pelo chão, dezenas de mim a imitam sem deixar
escapar um único som.
Livro dos autores dos contos de quarta aqui no blog ♥
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAdoro esses finais sangrentos, um tanto dramáticos e fortes dos contos do Bruno. Ele sempre me surpreende.
ResponderExcluirMaravilhoso conto, como sempre.
Desbravador de Mundos - Participe do top comentarista de junho. Serão quatro livros e dois vencedores!
Minhas quartas nunca serão as mesmas! rsrs
ResponderExcluirUoool Bruno que final foi esse...Achei mto forte porém mto bom!
Adoro contos com finais surpreendentes!
Parabéns!!
Bjs!
olá! o conto é bacana, mas esses finais sangrentos nem sempre me agradam, apesar de sempre me pegarem de surpresa!
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Uauu.. :O muito bom, intenso.. como um Amante apaixonado.. Quente como o fogo que reflete de seus corpos ! Me surpreendeu bastante, logo de início parece uma declaração de alguém que sentia tudo isso por ela.. mas no fim era o amor dela própria refletido diante de si. Pelo menos foi essa sensação que tive ao ler.. adoreiii.♥
ResponderExcluirO amor ferido espalhado pelo chão em pequenos fragmentos do próprio ego!!
ResponderExcluirIncrível ler um conto assim! Gosto demais, demais! E a cada quarta, uma surpresa diferente!!!!
Beijo
Olá.
ResponderExcluirLer esses contos é sempre uma grande diversão e o melhor de tudo é se surpreender com o final! Adorei! Parabéns e continue sempre a nos proporcionar esses ótimos momentos de leitura. Beijos.
Oi!
ResponderExcluirGosto muito dos contos aqui no blog e gostei muito desse como sempre esse final sangrento me surpreendeu !!