DIVINO
Eu não sei dizer por quanto tempo vaguei pela escuridão
gelada do vazio. Eu vi planetas se formarem, estrelas nascerem e morrerem em
explosões além da imaginação dos cérebros animais que tentaram me compreender.
Eu vi sistemas solares se formarem e serem engolidos por sóis famintos, buracos
negros devorarem as próprias noções de tempo e espaço, enquanto eu apenas
seguia sem destino pela escuridão do Universo.
E eu vi vida. Eu vi flores em jardins que compreendiam toda
a superfície de planetas. Eu vi insetos construindo colmeias que se estendiam
em busca da luz de estrelas indiferentes. Eu observei cobaias de laboratórios
se revoltarem contra seus mestres e construírem suas próprias civilizações das
ruínas de seus opressores.
Eu assisti tudo isso a distância enquanto viajava nas costas
congeladas de um asteroide perdido, o último vestígio de um planeta que nem eu
sou capaz de recordar, sempre em frente, sempre em movimento, sempre frio e
solitário.
Cheguei ao Planeta Azul por pura sorte. Eu não esperava
chegar a qualquer lugar depois de tanto tempo, muito menos um que fosse tão
receptivo. Conforme a rocha espacial se aproximava da superfície verdejante,
meu casulo de gelo se desfez com as chamas da reentrada na atmosfera, e eu
passei a sentir uma presença diferente de todas as que observei de longe
durante todo aquele tempo. Uma forma de vida diferente se encontrava neste
planeta.
A cratera que marcou minha chegada mal havia parado de
fumegar quando eles chegaram. Dentro de peles sintéticas, estes bípedes
encontraram meu veículo, ou o que restava dele, e levaram-me para um
laboratório de sua espécie, onde a minha pequena rocha espacial seria
analisada, catalogada, estudada, arquivada e esquecida entre outros objetos
caídos do céu. A pedra, pelo menos, foi.
Os aparelhos não foram capazes de detectar nada anômalo ou
perigoso no pedaço de rocha espacial, nem poderiam. Quem procuraria por mim,
afinal? O que eu era nesta altura, senão uma criatura microscópica, pouco maior
do que um átomo e uma consciência solitária? Algo pequeno que prontamente se
desprendeu daquele pedaço de matéria rude e flutuou para o ar estéril do
laboratório, pronto para ser aspirado pela primeira criatura que respirasse por
ali. Acabou sendo uma das cobaias.
Uma criatura de pelos brancos e cauda rosada que também
estava solitária em sua jaula de metal. O pequeno ser era alimentado pelos
bípedes e corria em uma espécie de roda vertical para a sua diversão. Eram eles
os seus mestres? Era uma escrava de seu entretenimento? Não sei dizer, pois as
memórias da criatura eram rudimentares demais para se tirar quaisquer
conclusões, e minha presença foi logo sentida pelo pequeno organismo.
A temperatura agradável de sua corrente sanguínea começou a
aumentar, como que querendo me expulsar. O sistema imunológico do animal
enviava células de combate que eram totalmente incapazes de lidar com a minha
biologia única. A criatura passou a agir de forma errática e violenta, atacando
as grades de sua pequena cela, destruindo sua roda de exercícios, chamando a
atenção de seus carcereiros bípedes até que um deles resolveu averiguar.
A pequena criatura rosnava e babava quando um deles se
aproximou da jaula trazendo sua refeição. O animal estava faminto e se lançou
contra as grades metálicas com tanta fúria que destruiu a porta de sua pequena
prisão. Livre, ele atacou.
O conceito de violência não era novo para mim. Eu o observei
de longe em diversas oportunidades, em dezenas de mundos diferentes. Sempre me
fascinou a forma como vida era capaz de aniquilar vida de formas tão bruscas.
Mas até então, eu nunca havia sido parte da ação.
O sangue, que já estava quente no corpo do animal, ferveu.
Tudo o mais deixou de existir dentro da mente rudimentar da criatura, que se
tornou uma marionete de instintos primitivos. Eu assisti fascinado quando a
criaturinha movida por processos químicos em seu cérebro animal saltou sobre o
bípede, pronta a lhe cravar dentes afiados como lâminas.
A criatura era pequena, no entanto, e foi jogada para longe
por um movimento brusco dos apêndices inferiores do bípede. O animal foi
lançado violentamente contra uma parede e algo quebrou dentro dele. O bípede
então pisou nele umas três vezes, gritando com ódio.
- Filho da puta!
E o meu hospedeiro morreu.
Eu também observei a morte durante minha jornada, então eu
sabia o que esperar da violência que se passara com o pequeno invólucro de
carne e osso em que eu me escondia. Os processos metabólicos cessavam um a um
enquanto o que restava da criaturinha abandonava seu mísero cérebro. A carcaça
já estava morta quando bípede nos descartou com o lixo.
O pequeno animal partira, mas eu não.
Confesso que levei um certo tempo para me acostumar a ter um
corpo, ainda mais um tão danificado quanto aquele. De fato, uma série de
microrganismos inferiores já o devorava quando finalmente assumi o controle.
Eu me arrastei para fora do balde de detritos usando o corpo
destroçado da criatura e sentindo algo que jamais imaginara até aquele momento:
fome. Sob esta forma, eu estava pela primeira vez refém dos instintos que observara
em tantos seres inferiores. Eu sentia fome, a necessidade de alimentar aquele
corpo morto era maior do que eu teria sido capaz de conceber sob minha antiga
forma. Uma vez em movimento, tratei de procurar algo que pudesse me alimentar.
Calhou de ser o mesmo bípede que destruíra o corpo em que eu agora habitava.
Ele não me viu enquanto rastejava em sua direção, deixando
um rastro de sangue e entranhas apodrecidas em meu caminho. Me aproximei em
silêncio e usei as presas do animal para morder um dos apêndices de locomoção
da criatura.
O sangue do bípede deixou uma sensação quente nas presas do
cadáver da criaturinha quando rasgaram sua carne. O sabor não era de todo
desagradável, apesar de muito diferente dos que experimentei através das
refeições da cobaia.
A dor e o espanto fizeram brotar impropérios da sua boca
enquanto ele pisoteava furioso o cadáver do pequeno animal. Ele pronunciava
blasfêmias sobre a mãe que o pequeno animal jamais conhecera e mandava a
criaturinha praticar certos atos para os quais não tinha mais um esfíncter
funcional que pudesse realizar.
O que restava do animal foi esmigalhado, mas não fez
diferença. Eu agora habitava no corpo de seu assassino.
Esta espécie tinha um cérebro muito mais desenvolvido do que
a anterior, ainda que também fosse limitado em suas capacidades animais.
Encontrei nele uma capacidade para a violência sem precedentes, uma fome de
poder e ganância que, estas sim, eram conceitos totalmente novos para mim. A
criatura sentia prazer em atos nefastos, apesar de não considerá-los com
seriedade. Haviam inibições internas e externas que poderiam ser lidadas com o
tempo. O mais importante daquele cérebro, porém, era a quantidade de
informações que pude acessar.
Ele possuía linguagem, o que tornava o mundo muito mais fácil
de assimilar. Pertencia a uma espécie chamada “humana”, era descendente de primatas e era um macho da espécie. A
outra criatura era um “rato”, uma das
muitas espécies escravizadas pela humana
para seus propósitos. Este humano
viva com uma unidade social de seus iguais chamada “família”. Depois de visitar um outro humano chamado “médico” –
um incompetente que lhe garantiu que não havia nada de errado com seu corpo -,
o humano foi para o lugar em que
habitava com sua família, se
alimentou e entrou num estado de hibernação breve, que a espécie chamava de “dormir”.
Percebi outra coisa no cérebro do bípede enquanto ele estava
neste estado de hibernação. Algo que eu jamais fora capaz de observar em nenhum
dos outros mundos, nem mesmo na criaturinha em que habitara tão brevemente
neste. Talvez fosse um vestígio evolutivo de seus ancestrais primatas. Contra
todos os avanços da lógica, residia ali um conceito de pura fantasia, uma entidade que este e outros animais de sua
espécie julgavam capaz de controlar o destino de toda a sua raça “humana”,
cuja vontade se expressaria através das ações de todos os seres “humanos”,
tendo o mundo inteiro sob seu controle. O “humano” chamava esta fantasia
de “Deus”. Tal fantasia era respeitada pela maioria dos “humanos”,
sendo invocada com reverência nos momentos mais aleatórios. “Vá com Deus”, eles
diriam, ou “Se Deus quiser”, ou ainda “Seja feita a Vossa vontade”, para
aqueles com tendências a arcaísmos.
Da mesma forma que o “rato”,
o corpo “humano” não reagiu muito bem
à minha presença. Sua temperatura variou, subindo e descendo a extremos. O
cérebro foi se tornando cada vez mais violento, o estômago cada vez mais
faminto, e eu apenas observava enquanto mais e mais médicos eram chamados e saíam de sua “casa” atônitos por não me encontrarem. Não havia o que pudessem
fazer ali, então levaram no para um “hospital”,
onde o humano foi deixado numa sala comprida com outros doentes.
Foi ali que assumi o controle do meu segundo corpo.
O humano se rendeu muito mais facilmente ao meu controle.
Aquele corpo também estava morto, mas sua fome por violência era maior do que
qualquer “rato” poderia conceber. O
primata era o hospedeiro perfeito.
Eu me levantei com facilidade do “leito” e olhei ao meu redor. O “quarto” do “hospital”
estava cheio de outros humanos frágeis, solitários e sedados. Meus dentes se
afundaram na carne do “homem”. Não deixei de notar: o “rato”
tinha presas mais apropriadas para cortar a carne do que as do primata, mas
onde aquele animal sentia apenas a fúria e o pânico da violência, neste havia o
júbilo. O animal humano, mesmo depois de morto, ainda era capaz de sentir
prazer ao afundar a cara na barriga de seu semelhante, chafurdando em
intestinos ainda cheios de sangue vivo.
Cego pela gula e querendo devorar o próximo doente, me
afastei do que restava daquele eu devorava e tomei conhecimento de algo novo.
Eu via o mundo ao meu redor com os olhos mortos do primeiro humano, mas também
tomava consciência de estar presente naquele segundo humano, que eu
destrinchara no “leito”. Eu era um,
mas habitava dois corpos. Eu não estava mais sozinho, mas ainda tinha fome.
Depois dos “humanos”
doentes, o meu corpo mais próximo da porta do quarto atacou um “enfermeiro”, e logo depois, este atacou
o de outro. A nossa fome crescia a cada novo corpo recrutado. Eu era muitos, e
logo seríamos todos, e todos seriam eu, e todos estariam
para sempre famintos.
Que seja feita a minha vontade.
Bruno Catão
Sempre repito: as quartas tem um gostinho mais do que especial aqui no blog!
ResponderExcluirQue conto/história mais cheio de emoção e violência..rs Adoro!!!!
No início achei que seria algo como Superman, depois virou A Hospedeira...e terminou? Não,não terminou..porque a saga continua!
Perfeito!
Beijo
Simplesmente fantástico!!
ResponderExcluirEu não sei se conseguiria escrever algo assim, mas definitivamente eu achei bem original acho que daria um clique dos mais bem escritos.
Parabéns!!
Bom dia!!
ResponderExcluirDemais, muito bom o conto e a cada momento o suspense aumenta, com certeza daria uma excelente história...show...parabéns!!
devoradordeletras.blogspot.com.br
Nossa, mas esse ficou caprichado! Muita violência e um modo bonito de ver as coisas. Frio, violento e pensativo. Adorei esse conto! Por mais desses no mundo, por favor *-*
ResponderExcluirum super conto, muito interessante e sob uma ótica nova e atrativa
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Bruno arrasa nos contos e tbm deixa um gosto de: kde mais?
ResponderExcluirParabéns Bruno!!!!
Bjs
Oi, Bruno!!
ResponderExcluirQue conto mais legal!! Gostei muito que pena que foi tão pequeno!!
Beijoss
Bruno!
ResponderExcluirApesar de minúsculo e bem asqueroso, o serzinho tem um obstinação feroz, hein?
Bom texto.
“A simplicidade representa o último degrau da sabedoria.” (Arthur Schopenhauer)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
TOP Comentarista de OUTUBRO com 3 livros + BRINDES e 3 ganhadores, participem!
Conto muito legal e instigante, confesso que inicialmente tive preguiça de ler pelo tamanho, mas depois percebi que ia ficando cada vez melhor.
ResponderExcluirUm abraço!
http://paragrafosetravessoes.blogspot.com.br/