DUAS BALAS
Nos filmes americanos, munição é um recurso infinito. John
McLane nunca teve que contar suas balas enquanto atirava em terroristas,
sequestradores, ou o que estivesse ameaçando a América, porque elas
simplesmente nunca acabavam. Na terra da liberdade, as suas armas nunca
deixavam de funcionar quando você precisava. Júlio não era americano. Muito
menos herói.
Heróis impediam o fim do mundo. Heróis protegiam suas
famílias.
A bem da verdade, ninguém pôde fazer nada sobre o fim do
mundo, nenhum herói poderia ter feito coisa alguma sobre este apocalipse. O
Juízo Final chegou sem alarde. O mar não virou sangue, nenhum anjo tocou
trombetas, nenhum demônio assumiu o governo mundial – nenhum novo, pelo menos.
O mundo simplesmente acabou.
Numa hora os noticiários estavam ocupados em mostrar o
escândalo político da semana, na outra os mortos se levantaram e começaram a
recrutar para seu exército na base das dentadas.
A histeria foi o que matou o mundo. O fato é que zumbis são
bestas frágeis e lentas que apodrecem e se decompõem em semanas. Se a razão
tivesse prevalecido, a crise dos zumbis teria poucos efeitos duradouros. Mas
onde fica a razão quando a Vó Lurdes aparece com um chupão gangrenado no
pescoço? É você quem vai despachar a velhota? Vai colocar uma bala na cabeça da
senhorinha que te passava chocolates quando a sua mãe dizia que não podia comer
doces? Vai colocar um fim na velhinha que te cobria de beijos e empanturrava
nos almoços de domingo? Na que tinha todas as receitas de remédios caseiros, bolos
e manjares? Naquela que te pegava no colo e dizia que logo seria você quem a
estaria carregando?
O coração é uma bosta.
O fato era: quando chegava a hora, a maior parte das pessoas
não cruzava a linha para pôr fim à vida de outro ser humano mesmo que fosse a
coisa mais racional a se fazer. Então a Vó Lurdes se degenerava em um cadáver
canibal e já era tarde demais, o caos se instaurou e mundo já era.
Os militares recuaram para proteger os próprios rabos e a
polícia seguiu o exemplo. Nas favelas, o crime organizado reforçou suas
estruturas e transformou barracos em fortalezas. Cada um com uma arma se virou
para cuidar de si mesmo. Tinham mais medo de outras pessoas com armas do que
dos mortos que se recusavam a ficar debaixo da terra.
Isto é, cada um, menos Júlio. Naquele corredor escuro, Júlio
tinha uma arma, um filho, duas balas e muito medo dos mortos vivos. E culpa
também. Muita culpa.
Já tivera mais na
vida. Perdera o que chamava de “vida” alguns poucos dias atrás. Perdeu seu
mundo há menos de um minuto.
A Márcia era uma mulher linda. Foi a primeira coisa que
Júlio notou quando a conheceu na primeira aula de contabilidade. Os cabelos
crespos caíam em cascatas negras e encaracoladas sobre o colo cor de chocolate.
O sorriso vermelho de batom mostrava uma confiança que Júlio veio a amar mais
do que tudo nos anos futuros.
Júlio e Márcia ficaram numa festa
da faculdade e resolveram sair num encontro um tempo depois.
- Como eu acho que o mundo vai
acabar? – ela repetiu a pergunta enquanto brincava com o canudo da latinha de
Coca. - Isso – ele confirmou – fim do mundo. Como você acha que as coisas
acabam para a humanidade?
- Você convence muita mulher com
esse papo? – ela zombou com cara de quem estava se divertindo.
- Ah, vamos lá, é divertido!
Os dois andavam calmamente no fim
do primeiro encontro. As luzes da Avenida Paulista foram trocadas pelos postes
do Tatuapé enquanto os dois caminhavam em direção ao prédio em que ela morava.
- O.K. – ela concedeu pensativa –
em que cenários você está pensando? Quais são as regras?
- Sem regras. Alienígenas,
zumbis, devastação nuclear, vampiros, o que for.
- E qual é pra você? – ela
perguntou.
- Ah! – ele riu, se inclinando
para perto dela – vampiros! Quem resiste a uma boa mordidinha no pescoço?
- Hahaha – ela gargalhou,
quebrando o clima – hahahaha... desculpa. Você é bonitinho, mas vampiros? Como
alguma coisa que naõ pode sair no sol vai dominar o mundo?
-E o que você acha? – ele
perguntou com um muxoxo.
-Zumbis é claro! – ela respondeu
com um brilho nos olhos – O mundo já está cheio de gente querendo se comer
mesmo.
Eles deram mais alguns passos até
a portaria do prédio dela, onde trocaram um beijo de boa noite. E mais um. E
outro.
- Por que a gente não sobe para
decidir se essa noite acaba com umas mordidinhas no pescoço ou com a gente se
comendo?
Depois disso, deslancharam. Casa,
carro, cachorro, casamento, trocas tresloucadas de emprego, filho, casa nova,
outro carro, mais um cachorro, festas de aniversário, escola, formatura da
quarta série, apocalipse zumbi. Pegou
todo mundo de surpresa, no fim das contas.
Júlio tinha uma arma, duas balas,
um filho e muito medo. Márcia ficara pelo caminho.
O caos já se instaurara há alguns
dias, os suprimentos acabaram e os três tiveram que se aventurar pelas ruas. As
tábuas pregadas na porta da casa não protegiam da fome, então eles partiram. O
ideal seria um lugar fácil de defender, com uma entrada só e com provisões para
durar até...
Até quando? Até os mortos
apodrecerem de vez? Até a sociedade se refazer? Até as novas estruturas do
poder se erguerem? Até alguém ordenar um ataque nuclear do conforto de algum
bunker subterrâneo? A imagem de homens sentados ao redor de uma mesa de tampo
verde sob a placa “sala de guerra” vinha à mente de Júlio.
Pelo caminho, acharam uma arma no
corpo meio comido de um policial militar. Tiveram que tirar a pistola da boca
do cadáver e quebrar os dedos da mão que a segurava, mas era bom ter algo com o
que se defender. Era uma velha Magnum, como nos filmes do Dirty Harry, com
quatro balas no tambor de 6 câmaras e uma no cérebro do PM morto.
- Eu fico com isso, cara – disse
Júlio, limpando a arma nas calças e guardando-a no cós dos jeans.
As quatro balas não eram nem de
longe proteção contra uma multidão ensandecida de canibais mortos, mas já eram
melhores do que carregar pedaços e de pau e pernas de cadeiras. O corpo do
policial pelo menos mostrava que ela funcionaria contra pessoas, o que poderia
se provar útil em disputas por comida ou abrigo.
Os três tinham os braços
carregados de latas de comida em conserva e corriam desesperados. O cheiro nauseante de decomposição precedia a
turba apodrecida e os cercava. De todas as direções, os zumbis se aproximavam.
Braços esqueléticos esticados, olhos baços e bocas escancaradas vinham para
cima deles sobre pés que se arrastavam no asfalto.
- Lá! – Juca apontou na direção
de uma pequena porta de aço. Parecia guardar a entrada para o andar superior de
uma loja de roupa, provavelmente um consultório de oculista ou outro
estabelecimento pequeno do tipo. A abertura entre a porta e o chão era pequena,
mas suficiente para que alguém se arrastasse por baixo na hora do desespero, o
que Juca se apressou a fazer. – Vamos!
Júlio veio logo depois, largando
as latas de conserva e tentando puxar a porta para facilitar a entrada, quando
ouviu o grito vindo de trás, acompanhado do tilintar do metal das latas caindo
no chão.
Da calha de esgoto, uma mão de
quatro dedos se esticou e agarrou a perna de Márcia, que caiu na rua gritando.
Márcia puxava a perna enquanto Júlio tentava soltar os dedos que a prendiam,
mas descobriu que os dedos dos mortos eram mais fortes do que ele esperava.
- Fica calma – ele pediu, puxando
a arma do cós dos jeans. Puxou o gatilho, mas as lágrimas fizeram-no errar.
Agora eram 3 balas.
A segunda bala também errou.
Agora eram 2. Puxou o cão da arma e tentou de novo, mas este acertou uma câmara
vazia. E então veio o grito.
Uma coisa careca agarrara Márcia
por trás e a mordera no ombro. Ela perdeu o equilíbrio e caiu, a horada a
poucos passos, e Júlio fugiu para baixo da porta.
- Fecha! Fecha! Fecha! – ele
berrou desesperado para o filho em choque. Baixaram a porta apressados e se
puseram contra ela, ouvindo lá fora os gritos fracos de Márcia morrerem.
Se encontravam num corredor
escuro que subia para o andar de cima. Uma placa indicava um consultório de
dentista. O sangue nas paredes indicava que alguém subira por ali recentemente.
Tinham 2 balas. Quatro mortos vivos desciam as escadas.
O cadáver do policial deu a
solução. Duas balas dariam conta.
- Me desculpa,
filho – disse Júlio enquanto puxava o gatilho e explodia a cabeça de Juca. O
disparo fez um barulho ensurdecedor, o que significava que, pelo menos, Júlio
não ouviria mais os passos dos zumbis que vinham em sua direção.
Os mortos se apressavam escada abaixo.
Júlio não era herói, e só tinha uma bala. Levou a arma para a boca e puxou o
gatilho quando o primeiro zumbi o alcançou.
Houve um clique seco quando o cão
encontrou outra câmara vazia e a última coisa que Júlio sentiu foram os dentes.
Me lembrou muito O Nevoeiro..rs
ResponderExcluirTodo esse jogo de imagens criados na mente, meio que desespero, aceitação.
É por isso que as quartas aqui no blog são as melhores sempre!!
A gente termina de ler com o coração acelerado e ao mesmo tempo, feliz!!!
Beijos
Nossa! Lembrou msm o final do filme O Nevoeiro! Fiquei relembrando as cenas, parecidíssimo!
ResponderExcluirO final é surpreendente, pensei que eles iam continuar fugindo...
Eu gostei! Zumbis são os melhores!
Bjs
uau, simplesmente uau!
ResponderExcluireu realmente não sabia o que esperar
http://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Olá, Bruno.
ResponderExcluirEssa visão mais fria e dramática de um universo com zumbis me agradou demais. É bem verdade que raramente se consegue surpreender quando se trata de zumbis, mas esse lado mais humano que você abordou foi bom demais.
Palmas e mais palmas para você.
Desbravador de Mundos - Participe do top comentarista de agosto. Serão dois vencedores e um deles levará um vale compras!
Oi Bruno.
ResponderExcluirAdorei o conto, parabéns! Zumbis e sobrevivência, sempre prende a atenção. Me vi lendo rápido e querendo saber o final. Mas já estava esperando algo assim, pelos acontecimentos que estavam surgindo. Muito bom. Abraços.