HAPPY HOUR
Da mesma forma que todos os dez
anteriores, aquele ano caminhava para se tornar o mais quente já registrado
pela humanidade. A rotina seguia a mesma: em conferências internacionais sobre
as mudanças climáticas, cientistas desesperados apontavam para gráficos com as
mudanças de temperatura e níveis das geleiras, prevendo desde cidades submersas
a extinções em massa. Ativistas revoltados protestavam contra as atividades de
madeireiras, dos grandes pecuaristas, das minas de carvão, refinarias de petróleo
e fabricantes de spray de cabelo. Religiosos pregavam a ira divina contra a
cultura libidinosa, contra os homossexuais, contra a liberdade sexual e
reprodutiva feminina e contra o fato de que não tinham mais poder para queimar
pessoas legalmente em praça pública. Políticos contavam dinheiro e instalavam
novos equipamentos de ar-condicionado em seus escritórios.
*****
Longe de tudo isso, numa dimensão que só poderia ser
explicada como o ponto onde fé, realidade, mitos e lendas param de discutir
sobre quem estava certo sobre tudo e partem para uma cervejinha e um cigarro no
fim do expediente, um chamado ecoou. Um som como montanhas explodindo se
propagou por salões majestosos jamais maculados pela presença mortal, capaz de
fazer deuses do trovão tremerem de susto em suas botas titânicas. Ou, ao menos,
fazê-los levantar do sofá para atender a porta.
- Fala, Pedro! – disse Tor, atendendo o interfone na parede.
-Oi, seu Thor... – cumprimentou o porteiro.
-“Tor”, - corrigiu o deus do trovão. – “Thor” é o cara dos quadrinhos.
-Er... Seu Thor...
-Tor! – o deus viking corrigiu com uma voz estrondosa
(efeito que foi totalmente perdido no interfone).
-Seu Tor – se corrigiu Pedro, dando um jeito de engolir o
“H”. – Tem um bêbado aqui embaixo...
-Cara vermelha e vestido numa toalha com umas folhinhas
atrás da orelha?
-Isso.
-É o Baco, Pedro. Deixa ele entrar.
Houve um silêncio na linha por segundos antes do porteiro
voltar a falar em voz baixa.
-Seu Tor... – Pedro voltou com uma voz trêmula. – Eu sei que
é o Baco, mas ele tá falando que o nome dele é Dionísio!
O deus do trovão fechou os olhos e soltou um suspiro que
tinha a força de uma tempestade.
-Deixa entrar, Pedro. – ele disse por fim. – Ele trouxe o
vinho.
O deus do trovão voltou ao seu lugar no sofá resmungando
algo sobre helênicos.
- Quem era? – perguntou Odin de trás de uma mão de cartas.
De alguma forma, o velho guerreiro conseguia olhar para o filho, para as cartas
que tinha na mão e para os outros jogadores na mesa de poke com seu único olho.
-É o Baco.– respondeu Tor.
-Ah! – Exclamou Jeová de seu lugar na mesa, em frente a
Odin. – Já era hora de alguém trazer um vinho!
-Não dava para o seu filho resolver isso? – Perguntou Odin.
-O Jê foi pescar nesse fim de semana. – Lúcifer respondeu do
seu lado da mesa.
A sala abarrotada de velhos cardeais cheirava como um
vestiário depois de uma partida de futebol particularmente acirrada, impressão
que corroborada pelo fato de que todos os velhos estavam de cueca. Quando as
temperaturas a cima de 40ºC se tornaram a norma, o novo papa decidira que era
hora de jogar a tradição pela janela, junto com a maior parte das vestes
sacerdotais. Mesmo assim, o papa suava.
Clemente V enxugou o suor do rosto vermelho com o lencinho
de seda que pendurava na aba da cueca. Mais do que o calor do dia, a raiva
esquentava o rosto do santo padre. Aquele era uma reunião importante, na qual
poderiam muito bem decidir o destino da humanidade. O que não quer dizer que
fosse uma situação agradável.
- Não. – disse o Papa com veemência.
- Mas Vossa Santidade não pode negar que é uma opção. –
apelou o Cardeal Rossi.
-Não! – repetiu o Papa, ficando cada vez mais corado.
-Vossa Santidade me desculpe, - disse o Cardeal Rossi sem a
mínima indicação de que pedia desculpas. – Mas é algo que precisa ser tentado.
-De jeito nenhum! – Vociferou o líder. – Eu estou vetando a
ideia inteira!
A sala caiu em silêncio de novo. Os velhos suados trocavam
olhares constrangidos sob a luz das velas.
-Onde já se viu? – resmungou Clemente.
A ideia em si, não apresentava nada de novo. No campo das
religiões, não havia nada de mais antigo e tradicional. Era algo que havia sido
tentado desde que o primeiro neandertal sonhara com o primeiro deus. Os
resultados costumavam variar de acordo com a deidade, frequência do ritual e meias
que o sacerdote estivesse usando. Nem sempre era sofisticado, e a maioria nem
parecia perceber o que estava fazendo, mas um sacrifício era um sacrifício,
justificava o Cardeal Rossi. Deuses viviam disso.
-Não – negou Clemente. – Se é a
ira de Deus, eu não sei, mas não vamos voltar a queimar pessoas. Além do mais,
vamos precisar da madeira logo.
*****
Depois de inalar profundamente o conteúdo de uma taça, um connoisseur poderia fazer um discurso
sobre como o vinho de Baco trazia o forte sabor de uvas cultivadas em terras
com características magmáticas. Ele poderia passar horas falando sobre como a
erosão de rochas magmáticas ricas em minerais do manto criara um solo rico em
ferro e magnésio, muito propício ao plantio de uvas que, por sua vez, seriam
pisoteadas por animados camponeses em roupas típicas. O líquido, não
propriamente vinho ainda, seria então deixado a fermentar em barris de carvalho
até que atingisse a idade e o teor etílico específicos, tornando-se então uma
bebida digna de qualquer deus e que deveria ser consumida com parcimônia para
demonstrar respeito à uma tradição antiquíssima dos povos mediterrâneos.
O connoisseur não
fora convidado. Baco enchia e imediatamente esvaziava baldes da bebida.
-De onde você – hic! –de onde você disse que veio esse vinho
mesmo?
Thot, o deus escriba com cabeça de íbis bebericava o vinho
que Baco trouxera, literalmente dando bicadinhas na bebida.
-Pompeia – respondeu o grego, que também era romano.
-Pompeia... Pompeia... - o nome lembrava o egípcio de algo,
ele só não sabia dizer o quê. -
-Eles fazem um churrasco ótimo também. – comentou Thot. – De
qualquer forma, do que estávamos falando mesmo?
-Ah, sim! – concordou – Você
disse que o símbolo dela é uma coruja, mas ela tem cabeça de gente?
O Cardeal Rossi não gostava nada daquela ideia. Ele era
membro da velha guarda e acreditava que não havia nada melhor para a alma do
que umas boas chibatadas a cada manhã. Não fazia questão de estar na parte que
recebia as chibatadas, mas admirava o princípio da coisa. Esse novo papa, esse
jovenzinho santarrão com os seus 70 e poucos anos, estava errado, completamente
errado. Não admirava que as coisas tivessem saído do seu controle.
Clemente V resolveu usar toda a
madeira restante no Vaticano para construir uma arca. Uma arca! Não havia mais
animal nenhum por perto para colocar dentro quando o navio ficou pronto, claro,
todos já haviam fugido para as montanhas ou virado cozido há muito tempo.
Sobraram os cardeais, que ficaram mais do que gratos de terem onde se abrigar
das águas que continuavam a subir.
A Arca mais parecia uma panela
de legumes cozinhando a vapor com todos aqueles corpos enrugados refestelados
aqui e acolá, pensava Rossi. Em todos os seus anos, jamais imaginara que
chegaria a sentir tanto calor enquanto estivesse vivo. Esperava aquilo no
Inferno, claro, onde o fogo do Senhor o consumiria pela eternidade, como ele
sabia muito bem que merecia. Mas não em vida. E tudo isso por causa de quem?
Ora, do Clemente!
Fora o Papa que recusara sua
sugestão de reinstaurar a Inquisição, não? Será que aquele moleque mal saído
das fraldas do seminário estava mancomunado com algum demônio? Será que
atrapalhava o caminho do Senhor de propósito? Só podia! Por que outro motivo
vetara sua ideia de trazer de volta a queima de bruxas? Está certo que não se
viam mais tantas bruxas por aí hoje em dia, mas isso não era só questão de
procurar direito? E na falta de bruxas, haviam tantos outros! Homossexuais,
feministas, comunistas, ambientalistas, ateus... tantos hereges! Não admira que
o Senhor estivesse agora se vingando deles com um dilúvio fervente!
Como não levavam lenha para uma
fogueira de verdade, a velha guarda amarrou o Papa Clemente numa estaca e o
colocou para cozinhar sobre o fogão. Não foi exatamente rápido ou eficiente,
mas foi o suficiente para o velho sacerdote gritar aos céus pela ajuda de
qualquer deus que estivesse ouvindo.
-Passo! – bufou Zeus, baixando suas cartas na mesa. Alguma
coisa lhe dizia que não fora uma boa ideia entrar no jogo com todo aquele vinho
na cabeça.
-Eu aumento 25 – disse Jeová, colocando novas fichas na
pilha à sua frente.
-Eu topo – rosnou Odin, seu único olho bambeando na órbita.
– e aumento mais 15.
Os deuses supremos se encaravam enquanto Lúcifer virava as
cartas sobre o tampo da mesa. Ignorando as hostilidades da mesa, o diabo fungou
e fez uma careta.
-Tem alguma coisa no forno?
Uma horinha com os Deuses!!!rs
ResponderExcluirUau!!! Não há palavras para descrever o sentimento ao ler este "pequeno/grande" conto! Que no fundo, é uma aula de mitologia e de sabedoria!
Amei!
Beijo
Bom dia Bruno.
ResponderExcluirNão posso negar que vc foi muito criativo...parabéns.
http://devoradordeletras.blogspot.com.br/
Muito criativo!
ResponderExcluirGosto de Deuses e a característica e o poder de cada um, excelente conto.
Até mais!!!
Bruno!
ResponderExcluirkkkkkkkkkkkkk
Me acabei de rir...
Os Deuses, Papa e todas as personagens, muito bem construídos.
Parabéns!
“Preferi sempre a loucura das paixões à sabedoria da indiferença.” (Anatole France)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
TOP COMENTARISTA ABRIL especial de aniversário, serão 6 ganhadores, não fique de fora!
oie, o conto é maravilho e tem um ar divertido que me agradou
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Oi.
ResponderExcluirParabéns, sua criatividade e humor, são divinos.
Ótimo conto!
Abraços.
Oii Bruno arrasou no conto heim, gostei mto!
ResponderExcluirMe divertir lendo aqui, parabéns!!
Bjs!