Dor Fantasma
Seis meses.
Seis meses que ele me deixou.
Seis meses que eu acordo todo dia com metade da cama vazia.
Seis meses que eu preciso cuidar mais da minha aparência se eu
quiser um dia sair dessa situação.
Os gastos com o advogado não têm me ajudado muito, tive que
mudar de manicure, dona Genésia do 2º andar.
Acordei às cinco horas com uma dor monstruosa no dedo mindinho
da mão esquerda. A maldita da manicure havia arrancado não só um bife, como uma
vaca inteira do meu dedo e agora ele estava rosa, uma mistura de sangue e pus.
Tomei meu remédio para dor, mas não serviu pra muita coisa.
Duas horas depois, quando botei o pé pra fora do apartamento, rumo ao trabalho,
meu dedo voltou a doer, mas uma vez atravessado o batente da porta, não tinha
mais volta.
A dor e o ambiente de trabalho hostil do banco, não ajudaram ao
longo do dia e não demorou muito para que eu berrasse algo com um cliente e meu
gerente me mandasse para casa.
No caminho de volta, aproveitei uma dessas clínicas médicas com
preços baixos e débito na conta de luz para examinar meu dedo, que não estava
mais rosa, apenas amarelo. Um médico com metade da minha idade e dentes mais
brancos que seu jaleco me avisou que os resultados só sairiam em 24 horas, no
mais, me ofereceu um atestado médico e uma receita com remédios que felizmente
eu já possuía.
Cheguei em casa e me joguei na cama e mesmo fazendo 29 graus,
eu tremia debaixo das cobertas, meu dedo latejava e se eu o apertasse pus
jorraria.
Finalmente o sono começou a chegar e assim que caí nele, meu
dedo me despertou - ou talvez meu berro de dor tenha me acordado. Girei com o
corpo para cima da minha mão imaginando se meus 55 kg seriam suficientes para
parar a dor. Quando vi o quão inútil foi minha tentativa, sai de cima da minha
mão e só consegui admirar a nova cor do meu dedo: azul ou roxo.
Uma ânsia de vômito tomou conta de mim e ficou mais
incontrolável quando vi uma grande mancha vermelha naquele lado da cama que
costumava ficar vazio. Corri para janela para tomar um ar e funcionou.
Funcionou por exatos 10 minutos, até que aquele dedo, como um
filho carente, voltou para me infernizar.
E isso se repetiu durante a tarde e adentrou a noite: alguns
míseros minutos de paz entre várias horas de dor. Quando percebi, eu estava
tentando solucionar o problema: minha mão boa segurando um cutelo no ar,
enquanto a hospedeira do dedo azul estava repousando sobre a tábua de carne sob
a pia da cozinha.
Eu não tinha a menor ideia de como fui parar ali, mas logo
pensei que talvez diante da minha covardia, minha mão direita havia decidido
por tomar alguma atitude.
O cutelo descia devagar, marcando exatamente o fim do dedo azul
e o começo da mão pálida, mas subia sem demora. Foi então que a dor parou. Na
hora certa!
Mexi meu dedo azul e nada de dor. Porém, assim que coloquei o
cutelo sob a pia a dor voltou mais forte do que nunca, como se me desafiasse,
como se me chamasse de covarde.
PÁ!
Aquele dedo fino, longo e azul rolou pela tábua de carne para
dentro da pia.
Eu comecei a rir, por mais que doesse, ainda era uma dor mais
branda do que aquela das últimas 24 horas. Estava feliz, livre, sem dor, sem
sofrimento. Enrolei uma toalha na mão e me arrastei até o quarto e minha cama.
Só acordei com o Sol batendo na minha cara. Havia dormido mais
de 12 horas seguidas. E estava viva, não havia sangrado até a morte. Mas algo
estava errado. Notei um formigamento, descendo pelo meu braço esquerdo, se
espalhando em minha mão e então chegando no meu dedo, ou melhor, onde meu dedo deveria
estar. Como isso era possível?
Soltei um berro quando percebi que o formigamento havia se
transformado na dor do dia anterior. Corri para a cozinha e vi meu dedo roxo,
quase preto, na pia. A dor estava onde ele deveria estar, mas ele não estava
lá, o forcei a se separar de mim e agora só o que me sobrou foi uma dor
fantasma.
E agora me pergunto: será que se eu cortar minha mão inteira,
isso vai resolver meu problema?
Eu levanto o cutelo novamente.
1.
2.
3.
Pá.
Felipe Amaral
Nossa que conto mais forte e estranho!! Pois não acho que uma pessoa em sã consciência faria algum tão sinistro com se auto amputar um membro seu. Acho o que a protagonista desse conto está sofrendo muito e acaba por fazer algo para extirpar sua dor.
ResponderExcluirBeijos
A mente humana é algo perturbador! E ler um conto assim, só nos mostra o quanto somos frágeis diante da dor e de nossas limitações. Será que arrancar o coração tira a dor de um amor? Será que a dor é realmente algo que nos deixa assim, perturbados e incoerentes??
ResponderExcluirAdorei!!!!
Beijo
Meeeeu Deus! Na hora da dor a gte só pensa em como aliviar...Que conto!! Ameeei dmais! Parabéns Felipe!!
ResponderExcluiruma ótima metáfora para as dores que procuramos aplacar com uso de outros artifícios que nem sempre são benévolos
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Adoro contos que mostrem esse lado mais perturbador dos humanos. Além disso, pode funcionar como um ótimo texto figurativo.
ResponderExcluirExcelente conto.
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