Tô Pensando em contos... E se...





E SE...





Augusto estava satisfeito. Seus dedos e unhas sempre coloridos de tinta massageavam a nuca tensa. Preocupava-se: o trabalho, as fases de sua namorada, um possível vestibular, o ano de discussões políticas acaloradas, as rejeições de emprego que o pai recebia, Arda…

Arda era filha de sua madrasta. O pai de Augusto havia se casado com a mãe de Arda há alguns anos, e junto com o novo casamento havia vindo uma garota um ano mais nova: a irmã que nunca teve. Ela andava estranha. Mais estranha que o costume. Rejeitava cuidados ao mesmo tempo em que exigia sua atenção: há anos isso não acontecia.

No banho, vigiou seus pensamentos. Ao deitar-se, tratou de trocar mensagens com a namorada. Mas perto de dormir não pôde evitar a lembrança.

Há 5 anos, quando seus pais começaram a namorar e Arda e Augusto começavam a se tornar próximos, Arda lhe disse que estava grávida com uma calma que só serviu para apavorá-lo ainda mais.

- Mas e aí, meu? Cacete, Arda! Mas você só tem 15 anos, e agora?

- Afobação não resolve muita coisa – Ela respondeu devagar - Não sei como o Júlio vai reagir.

- Você ainda não falou pra ele!? - Augusto sentou-se, tonto - É muita informação!

- Não quero que ele saiba.

- Ah, legal, e vai dizer o que? Que é barriga de lombriga?

Ela sacudiu os ombros.

- Preciso que você roube um Cytotec no hospital.

- Oi?

Arda explicou que já fora duas vezes ao hospital em que a mãe trabalhava procurar por testes de gravidez. Achou que seria suspeito aparecer muitas vezes.

- Suspeito? E eu que nunca vou pra lá, Arda? - ele tremia.

Por fim, conseguira. O mais difícil era despistar a mãe de Arda. Não, talvez a maior dificuldade fosse manter a calma. Sentia-se um duplo criminoso.

No dia escolhido, se trancaram sozinhos em casa. Augusto já havia roído todas as unhas e puxava pele dos dedos com os dentes.

- E se der merda? Uma hemorragia? Pra quem eu peço ajuda?

- Dá pra parar de azarar? Dê esse negócio aqui. Vou tomar e ficar deitada em paz.

Ele não se mexeu. O remédio escondido dentro da mochila customizada.

- A gente tem que conversar.

- Que saco, já não falamos sobre isso? – Ela alterou-se - Eu tenho certeza, sempre tive. Eu estou bem, de verdade. Só preciso que tenha alguém comigo.

- Você não acha que é injusto com o Júlio?

- Eu não ia querer passar por isso com ele aqui.

- Estou falando de você não contar pra ele.

- Ele aceitaria minha decisão.

- Como você sabe? Ele é mais velho, ele trabalha. Talvez seja diferente.

- Augusto, é o meu corpo!

- Eu sei, caralho, eu sei! Só entenda que você não engravidou sozinha, não acha que ele merece ao menos saber?

- Eu não quero ter um filho do Júlio, dá pra entender? Eu gosto dele, mas não quero ficar vinculada a um cara como ele pra sempre. Filho é coisa séria. Isso é um ato de respeito com essa criança, antes de ser uma forma de manter minha vida do jeito que conheço.

Eles estavam a um tom de gritar um com o outro. Augusto foi buscar um copo d’água para cortar o assunto.

Quando voltou, Arda estava na cama, coberta. Ele deitou-se ao seu lado. Encarando-a, tomou fôlego e perguntou um pouco solene:

- Arda… se o problema é esse... e se eu assumisse? Não somos irmãos de verdade, se eu dissesse que a criança é minha… você… ?

Ela sorriu triste.

- Mesmo que eu aceitasse, seria tarde demais.

Augusto procurou por sua mochila no canto do quarto. Aberta.

Deitou-se novamente e a abraçou. O comprimido já dissolvera sob sua língua.


























7 comentários

  1. Forte...
    Mesmo não gostando nenhum pouco do tema e sendo totalmente contra o aborto, acabei lendo a crônica e ficando meio sei lá..com aquela cara de??
    Realidade, simples assim!
    Beijo

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  2. Meu deus uma vidinha eu não sei como lidar com esse assunto de aborto, e pensar que tantas mulheres pensam como Arda, foi muito reflexivo, puxa é uma vida penso eu e tantas mulheres que morrem quando fazem esse ato.
    Muito bom e real.
    Abraços!!!!

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  3. Eu tenho minha opinião sobre o aborto mas minha condição de cis-hétero - já me chamaram disso no Twitter - pode deturpar tudo. Gostei do conto, tema forte, mas é bom na medida em que prende, e prende muito o leitor.

    Dois abraços.

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  4. Ai Allana!
    Augusto tão cheio de boas intenções e Arda cometendo um crime...
    Muito triste.
    Sou contra o aborto, seja de que tipo for, a prevenção sim, deve ser feita antes...
    “A sabedoria começa na reflexão.” (Sócrates)
    cheirinhos
    Rudy
    http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
    TOP COMENTARISTA ABRIL especial de aniversário, serão 6 ganhadores, não fique de fora!

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  5. eu não consigo ver o aborto como uma opção, acredito sim no poder feminino de dominio do corpo, mas talvez pela minha ansiedade em relação a maternidade ver a naturalidade da realidade de tantas Ardas me incomoda bastante
    http://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/

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  6. Oi. Um conto com um tema forte, perturbador e polemico. Ficou muito bem escrito.
    Realidade para muitos. Reflexivo.
    Abraços.

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  7. Olá! Um assunto forte e triste ao msm tempo, sou á favor de prevenir pra que isso não precise ser feito...
    Bjs

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