QUIMÉRICO
Tem certeza que tudo que você vê é real? Todas as pessoas que passam por você na rua realmente estão ali? Ou isso é coisa da sua imaginação?
Seu cérebro trabalha o tempo todo a seu favor? Ou lhe prega peças as vezes?
Eu achava que tudo era de verdade, até vir parar aqui nesse quarto branco, com paredes enlouquecedoramente brancas, cama branca com lençóis brancos e enfermeiras brancas vestidas de branco. Nem sei se todas as enfermeiras e médicos que entram aqui falando comigo ou me medicando são reais. Tudo se confunde.
Quando era criança tinha um amigo chamado Enzo. Ele estava sempre por perto. Assim que eu chegava em casa ele vinha brincar comigo. Quando estava calor, íamos correr e brincar no quintal, e quando estava chovendo, ficávamos no quarto jogando algum jogo e conversando.
Quando cresci minha mãe me disse que eu deveria parar de falar com o Enzo, pois só eu o via. Achei que ela fosse maluca. Como ela não via o Enzo?
Briguei com ela, fiquei com muita raiva. Como ela poderia me proibir de falar com meu único amigo?
Um dia contei isso para o Enzo... Ele me disse que minha mãe tinha razão, mas que eu não deveria ficar chateado com ninguém, pois eu não tinha culpa disso.
Pela primeira vez achei que todas as pessoas estivessem ficando loucas.
A minha vida continuou entre o que eu via, o que os outros viam, e o que todos víamos.
Até o dia que eu estava na estação do metrô e estava muito cheio. Era horário de pico. Em São Paulo andar de metrô as seis da tarde é bem complicado. Até quem não sofre de ansiedade e pânico sente falta de ar e o suor gelado escorrendo pela coluna quente.
De repente eu vi um espaço longo e vazio ao meu lado. Uma extensão da passarela que não tinha quase ninguém ocupando. Como não estava morrendo de pressa de chegar logo em casa, resolvi ir até aquele lugarzinho e esperar o metrô dali.
E foi quando eu estava chegando bem perto que uma mulher alta, negra e bem magra agarrou meu braço, me puxou pra trás com toda a força e me jogou no chão.
O metrô chegou, mas várias pessoas ficaram em volta de mim ao invés de entrar nos vagões já lotados.
Fiquei naquela posição até que os seguranças chegaram, me colocaram numa maca e me carregaram pra fora dali. Eu estava bem, e após convencer os homens disso eles me deixaram ficar sentado numa cadeira, mas não me deixaram sair da sala.
Uns policiais chegaram e ficaram cochichando com os seguranças. Todos olhavam pra mim de rabo de olho.
O que estava acontecendo?
Um dos policiais sentou numa cadeira na minha frente. Era um senhor de cabelos brancos e logo perguntou:
- Me diga o que aconteceu, filho.
Contei pra ele. Tudo desde que cheguei na estação. Eles se olharam, mas não disseram nada. O segurança que estava atrás da mesa virou um monitor pra mim e mostrou o que houve.
Eu estava sozinho no meio de uma multidão. Fui saindo devagar e caminhando em direção ao fim da plataforma. Quando o trem estava chegando eu estava caminhando ainda, já tinha passado da linha amarela. Eu ia cair nos trilhos. De repente caí pra trás. Sozinho. A mulher negra não estava no vídeo.
- Mas eu a vi. Eu vi um espaço vazio e vi a mulher!
- Não há ninguém ali. Você caiu sozinho. Ia morrer atropelado pelo metrô, mas caiu pra trás.
- Não é possível!!
- Já chamei uma ambulância. Logo ela chegará e você será levado para o hospital. Tem alguém da família que podemos chamar?
- Sim. Vou ligar eu mesmo.
E assim foi. Os médicos chegaram e me levaram. Tomei algumas injeções e agora durmo e acordo nesse quarto.
Mas me diga uma coisa: "Tem certeza que tudo que você vê, é real?"
Obs.: Baseada numa história "real" de um esquizofrênico.
Sabe quando não há palavras que possam expressar determinado sentimento?
ResponderExcluirEstou assim.
Não pela dureza e realidade do texto,mas pelo se sentir um peixe fora d'água num mundo onde nada é real. Onde tudo pode ser e ao mesmo tempo, pode não ser.
É uma doença devastadora, tanto para quem a sofre, quanto para a família e ler assim, como se fosse realmente assim, foi pesado para a alma.
Afirmo hoje com todas as palavras que me faltaram, que nesse tempo inteiro de contos, crônicas aqui no blog, este foi o mais sentido e o que mais doeu e emocionou!
Parabéns!!!!
Beijo
Ual!
ResponderExcluirMe peguei confusa agora, pensando se realmente vejo o que vejo...
É triste demais que pessoas passam por esse delicado problema, imagino pra família conviver sem nada poder fazer...
Parabéns Lelê!!
Bjs
Oi, Lelê!!
ResponderExcluirAdorei o conto achei bem comovente é triste por que não sabemos quase nada sobre essa doença e também por que os familiares das pessoas que tem essa doença também sofrem!!
Beijoss
Lê!
ResponderExcluirTenho casos de esquizofrenias na família e já presenciei vários surtos com alucinações, que é o caso do conto, e são situações realmente questionáveis, porque nós não enxergamos o que as pessoas em surto veem, tudo é dentro da cabeça delas.
Gostei demais do conto.
“Não há saber mais ou saber menos: Há saberes diferentes.” (Paulo Freire)
Cheirinhos
Rudy
TOP COMENTARISTA DE JULHO 3 livros, 3 ganhadores, participem.
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
oi Lê, um texto bem bacana! a forma como você abrdou o tema é brilhante
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Oi.
ResponderExcluirO texto demonstra uma realidade de sofrimento, dor e muitas indagações, para todos os envolvidos. Já presenciei casos dessa doença, em família e sei o quanto é difícil, para nós que estamos assistindo e não conseguimos ajudar.
Parabéns pelo conto.
Beijos.
Nossa, muito impactante este conto, mostra o sofrimento, a dúvida, é bem comovente, não sei muito coisa sobre esquizofrenia, deve ser muito triste para quem passa por isto, e também para a família.
ResponderExcluir"- Eu vejo gente branca." rs
ResponderExcluirMuito bom o conto. Parabéns mais uma vez!