BOLHOSO
O robô poderia ter sido laranja –
em algum tempo muito remoto –, mas agora era de um amarelo escuro e um tanto
pardacento. Fora construído de maneira
ligeiramente antropomórfica, de modo que saiu da fábrica com dois braços, duas
pernas, tórax e uma interface frontal com duas câmeras que se assemelhavam a
dois olhos enormes e brilhantes. Não era grande, visto que sua função original
era a de simplesmente embalar brinquedos em plástico-bolha “Para mantê-los
seguros e intactos”, como diziam as letras desbotadas e garrafais na velha
caixa quando o velho trouxe-o para casa.
Não o comprara para uso
doméstico. A pequena geringonça – já bem ultrapassada na época – fora comprada
para auxiliar no empacotamento dos vasos e outros artigos decorativos de
porcelana que o velho tinha o prazer de produzir e vender para uma boa parte do
sul e sudeste do país. A destreza do pequeno EZ-Wrapper em muito superava a sua
quando o quesito era embalar: envolvia a peça nas cinco camadas de
plástico-bolha necessárias à preservação dos bibelôs mais delicados, ainda
assim, mantendo o produto inteiramente visível lá dentro, o que garantia a
qualidade da embalagem e da peça criada pelo velho. Totalmente sem desperdício de plástico ou
perda de peças, EZ era uma maravilha mecânica.
O tempo economizado na embalagem foi
extremamente útil ao velho, que desenvolveu seu trabalho ao ponto em que cada
peça era, inegavelmente, uma obra de arte. Suas criações passaram a ser
requisitadas por colecionadores ao redor do mundo, e, conforme sua fama crescia
– bem como os lucros –, o velho EZ permanecia ao seu lado, cada vez mais
inadequado.
Não que o velho não tivesse
tentado seu máximo para manter o robô alaranjado em ordem, mas não havia muito
que pudesse fazer. Trocara quase imediatamente as pernas ridículas e instáveis
por duas esteiras rolantes, semelhantes às de um tanque, com adaptações para
subir escadas; substituíra as duas espátulas no final dos braços por manoplas
que lembravam mãos humanas, mais ágeis, articuladas e eficientes; trocara a
caixa de som quebrada por uma funcional para que o robô pudesse emular a fala
de forma mais inteligível. Agora o velho podia compreender que o autômato dizia
“Está tudo seguro e intacto, mestre” quando acabava seu trabalho.
Mas afora as mudanças de
hardware, não podia fazer muito pelo pequeno EZ. Seu processador, ultrapassado
mesmo para os padrões da época em que fora construído, não possuía uma grande
capacidade de atualização. Sua programação primária nunca seria apagada
totalmente, e o EZ Wrapper seria sempre um EZ Wrapper. Por alguma razão, era
até mesmo ilegal tentar atualizá-lo desde que sua fabricação fora descontinuada
há tanto tempo atrás, o que ia totalmente contra a política normal da EZ-Robotics
no que dizia respeito à liberdade de software.
Entretanto, a diferença entre o
ilegal e o impossível sempre fora bem clara ao velho, que decidiu que umas duas
ou três linhas de código a mais não poderiam fazer mal algum ao velho EZ. Não
precisava que ele calculasse a densidade de buracos negros, só queria manter
sua companhia robótica por perto em agradecimento aos frutos que sua lealdade
trouxeram. Lealdade. A palavra despertou uma ideia primitiva no velho.
As crianças não demoraram a se
afeiçoar pelo novo robô de estimação. Seus braços mecânicos e suas esteiras com
seu motor barulhento o faziam o bichinho mais estranho que já tiveram, mas a
programação para emular um cachorro parecia ter sido bem feita. Corria atrás
das crianças pela casa, sempre uns dois ou três passos atrás, emitindo latidos
metálicos para o seu divertimento. Também era bom em fazer seus truques:
fingia-se de morto, rolava pelo chão (estragando o carpete todo, reclamava a
mãe), buscava bolinhas jogadas pelo jardim e até, numa atitude um tanto
cartunesca, trazia o jornal quando o velho se sentava em sua poltrona favorita.
Chamavam-no Bolhoso.
Era, entretanto, e sempre seria,
um EZ Wrapper. Sua antiga programação se mostrava presente em momentos
aleatórios, mas era de todo inofensiva. Uma cena extremamente engraçada
acontecera certa noite quando o velho o encontrou embrulhando a privada em
papel higiênico – sua única peça de porcelana dentro de casa. Não poderia
apagar a programação no que dizia respeito ao ato de embrulhar, então apagou o
conteúdo sobre porcelana. Não houve mais incidentes parecidos por um longo
tempo.
Certa feita, o velho precisou
fazer uma viagem de negócios. Só por uns dois dias, ele dissera à esposa. Só o
suficiente para garantir a autenticidade de umas peças a um colecionador
deveras entusiasmado e então estaria de volta. Cuide bem deles, ele dissera ao
robô. Mantenha tudo seguro e intacto, ele acrescentara num tom bem-humorado,
lembrando a velha frase que Bolhoso há muito já não dizia.
Mais tarde, os vizinhos concordariam
que a casa permaneceu estranhamente silenciosa, mas não deram muita atenção ao
fato. Ninguém recebeu o velho na garagem quando ele chegou na noite do segundo
dia, mas ele riu para si mesmo quando reparou com curiosidade que suas caixas
de ferramentas e as bicicletas das crianças estavam embrulhadas em grandes
camadas de plástico protetor. O velho Bolhoso andara aprontando.
Entrou pela sala para descobrir
que o mesmo acontecera com a TV e o sofá. As maçãs e bananas na fruteira da
cozinha estavam cobertas com plástico bolha. Nada ouvia pela casa. A esposa
havia saído com as crianças – provavelmente para a casa da mãe, como de costume
aos sábados – e ninguém estivera por perto para deter o velho EZ Wrapper antes
que fizesse das suas. Encontrou o corrimão da escada que levava aos quartos
coberto pelo mesmo material, já sem surpresa, mas com uma irritação crescente
para com o pequeno robô. Teria que apagar muita coisa de sua programação depois
dessa. Talvez tudo.
Com o cansaço da viagem, jogou-se
em sua cama sem acender as luzes do quarto. A sensação de plástico ali era
palpável, mas o velho não queria lidar com aquilo naquele momento. Simplesmente
fechou os olhos e adormeceu.
Acordou com a luz do sol batendo
sobre seu rosto e se virou para o lado da cama em que a mulher costumava
deitar. Sob cinco camadas de plástico bolha, ela o encarava com a boca
escancarada e um olhar de completo pânico. O velho gritou e caiu da cama.
Desesperado, enfiou as unhas pelo plástico, rasgando tarde demais uma abertura
para que ela pudesse respirar. O peito da mulher permaneceu estático. Seus
olhos permaneceram fixos e arregalados, encarando o nada com uma expressão de
horror.
O velho correu para o quarto das
crianças. Encontrou-as: dois montinhos de plástico-bolha, expressões vidradas
em terror enquanto as bocas se escancaravam para buscar ar que não lhes chegou
a tempo. Gritando, caiu de joelhos no chão e pôs-se a chorar.
O barulho de esteiras sendo
movimentadas por um motor chegou próximo a seus ouvidos.
“Está tudo seguro e intacto,
mestre.”
E eu ali, lendo e vendo Wall-E na minha frente e imaginando como seria a vida com um bichinho destes aqui em casa. Não para tarefas envolvendo plástico bolha, mas para companhia, para ouvir sons de alguém pela casa e vem o final já anunciado deste conto.
ResponderExcluirMenino, você dilacerou meu coração!
Espetacular é pouco para descrever tudo que li acima.
Parabéns e obrigada por permitir que pobre mortais, como eu, pudessem ter acesso a uma obra tão maravilhosa!
Beijo
Aii Bruno que lindo seu conto!!!
ResponderExcluirMe emocionei demais!
Quem dera se pudéssemos ter um desses ... eu qria!
Parabéns!
Bjs
Nossa, Bruno!! Não espera esse final!! Fiquei muito surpresa, acho que estou com trauma de robôs agora!! Parabéns pelo conto!!
ResponderExcluirBjoss
Não sei dizer em que momento bateu o sentimento de "vai dar ruim isso aí", mas devo dizer que foi surpreendente. Tem todo um ar de tranquilidade e banalidade no início, o que cria um bom plot quando a sensação já citada se confirma. Muito bom, você é foda. ;)
ResponderExcluirBruno!
ResponderExcluirQue criatividade, hein?
Achei o conto uma tremenda ficção... e triste...
Tremendo horror ficcional.
“Bendito seja eu por tudo o que não sei, gozo tudo isso como quem sabe que há o sol” (Fernando Pessoa)
Cheirinhos
Rudy
TOP COMENTARISTA DE JULHO 3 livros, 3 ganhadores, participem.
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
super criativo, final surpreendente!
ResponderExcluirhttp://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/
Oi.
ResponderExcluirAdorei o conto, apesar de ter um final meio que chocante e triste! Mas muito criativo! Parabéns.
Abraços.